Vivi sábado no Adoniran, reduto nostálgico de música e gastronomia, as três horas sequenciais mais importantes dos últimos anos de enclausuramento involuntário. Talvez não considerasse aquele encontro de ex-funcionários do Diário do Grande ABC tão impactante caso não houvesse capturado na dor de um incidente o valor mais profundo de estar vivo. Encontrar mais de três dezenas de estivadores da informação que ajudaram a construir intelectualmente a história do Grande ABC durante as décadas de 1970 e 1980, principalmente, foi um presente inesquecível. Eles se ocuparam de tarefas extenuantes em períodos coincidentes ou não de presença na Redação do Diário do Grande ABC. Moldaram e incentivaram diariamente a cultura social de consumo de informações. Centenas de milhares de habitantes da região usufruíram do legado.
Numa linguagem dilmista, talvez o significado pessoal do resumo da ópera daquele encontro seja a seguinte equação aritmética: revivi ali 25% de minha carreira profissional. Ou 20% de minha existência. Não tentem fazer as contas para decifrar o que são 25% ou 20% porque a roda da contabilidade pega. O que conta mesmo nesse embaralhamento proposital é dizer que não saberia o que seria não houvesse o jornalismo que abracei aos 15 anos no Interior do Estado. Aquele período de Rua Catequese embalou de vez.
COLETIVO TRANSFORMADOR
O Diário do Grande ABC faz parte desse enredo, em proporção inferior aos 20 anos da revista de papel LivreMercado. Mas, em termos coletivos, de convivência com companheiros de jornada, aqueles 15 anos de Diário do Grande ABC são inigualáveis. Mais, inclusive, que os nove meses de 2004-2005, quando ali voltei como Diretor de Redação. Por isso, aquelas três horas de tantas décadas não têm preço.
Não pretendia personalizar a revisita metafísica à Redação do Diário do Grande ABC durante aquelas três horas no Adoniran. Não encontrei outra saída. Provavelmente foi o período mais fértil de inteligência coletiva daquele então maior jornal regional do País.
A região bombava economicamente. Classificados de empregos e de automóveis transbordavam nas páginas do jornal num período em que não havia alternativas de mídia a dividir o mercado publicitário, tampouco informativo. O Diário do Grande ABC reinava soberano. Havia uma intriga interna entre a Redação e o Comercial. Vinculava-se a atenção de consumo do jornal aos anúncios abundantes.
ESTÁDIO EM CATARSE
Os fatos, em forma de repercussão, teimavam em desmentir o enviesamento. Quase botamos fogo no Estádio Bruno Daniel quando cometemos a loucura de tratar um Santo André versus Taubaté como jogo da vingança, por ter, no primeiro turno, sido marcado por brigas, inclusive com a morte de cachorro. O Estádio Bruno Daniel ficou lotado e a atmosfera belicosa só foi contida porque o Santo André ganhou um jogo dramático também dentro de campo. Jamais vi um Bruno Daniel tão ensandecido.
Em outras editorias os desdobramentos do noticiário eram mais discretos, entre paredes e corredores dos poderes Legislativo e Executivo. O Diário do Grande ABC ditava o ritmo do jogo da cidadania municipal. Cidadania regional seria exagero. Não existirá jamais regionalidade para valer onde não existe cidadania regional.
É impossível não escrever na primeira pessoa, mesmo que possa parecer cabotinismo. É a primeira pessoa que carrega sentimentos muito específicos como matéria-prima cognitiva à aferição daquele encontro de sábado no Adoniran que transcende a condição profissional de cada um. É um turbilhão de sentimentos pessoais.
VENDO NA IMAGINAÇÃO
Vi quem não via há muito tempo. Vi alguns que vi esporadicamente há algum tempo. Não vi quem já foi embora dessa vida. Pensando bem, os vi nas lembranças compulsórias de quem vê os vivos e sente saudade dos mortos conectados no passado.
Só não vi mesmo quem, mesmo vivos, por alguma razão não puderam atender ao chamamento de Helena Domingues, coordenadora e motivadora do encontro.
Vi na imaginação pessoal aquela Redação do terceiro andar do Diário do Grande ABC tomada de jovens enlouquecidos no dia a dia de produzir informação.
Quantas gerações da população de uma região feita de ferro e aço de linhas de produção repetitivas aquela turma do encontro no Adoniran não fez brotar em cultura e paixão?
SINFONIA ESPECIAL
O dedilhar nas máquinas mecânicas barulhentas de escrever tornava a Redação uma sinfonia infernal a estranhos no mundo da industrialização da notícia. Uma sinfonia especial para quem era do ramo. Não temos ideia – agora falo pelo coletivo – do quanto todos do encontro no Adoniran sacrificaram-se para deixar um legado próprio de uma profissão mais de fé messiânica do que de razões econômicas.
O Grande ABC que conhecemos se desfaz a cada dia sob o peso de irresponsabilidades cruzadas de mandachuvas e mandachuvinhas dominadores imperialistas de uma sociedade servil e desorganizada. Esse Grande ABC em derretimento jamais teria existido sem o cumprimento de uma missão evangelizadora a cada nova edição impressa.
E quem cuidou disso foram gerações de jornalistas num contexto em que os obstáculos se multiplicavam numa geografia burramente dividida em sete pedaços a exigir esforços múltiplos para retratar um conjunto eternamente fraccionado e improdutivo.
COMO PRONTO-SOCORRO
Tudo isso e muito mais me veio à mente durante as horas subsequentes àquele encontro no Adoniran. É impossível sair daquelas três horas como se tivéssemos cumprido ritual de troca de roupa. As lembranças sobrevieram.
No meu caso específico, talvez a sensibilidade tenha tocado um bocado acima do tom por si só marcante. Aquelas três horas de décadas consumadas resumiram vidas inteiras. Pouco interessa quanto tempo cada um dedicou àquele ambiente esfumaçado e sempre efervescente da Rua Catequese.
O leitor não tem ideia do que era o dia a dia naquela redação. Se alguém já frequentou um pronto-socorro convencional, de salve-se-quem puder, basta projetar algo análogo no tratamento de fatos de diferentes temas e dimensões a cada nova hora de trabalho, seguidos de curadoria de qualidade e encaixe de informações que chegariam em papel de madrugada aos assinantes. Fazer jornal sempre será uma loucura. Há simbolismo na junção de vidas em risco e missão de vidas.
No meu caso e no caso da maioria dos profissionais, o jornalismo era a convergência da fome da vocação com a vontade de comer das necessidades.
SAINDO DO ZERO
Em larga parte dos primeiros 15 anos de Diário do Grande ABC morava num quarto e cozinha de 20 metros quadrados num fundo de fundo de quintal na periferia de Mauá. Um buraco na porta da cozinha tornava os ratos invasores constantes. Me sentia no paraíso. Pouco tempo antes saltava da carroceria de um caminhão de mudança, 500 quilômetros depois da partida, no Interior do Estado, em busca de um destino. Eu e cinco irmãos.
Como entender o jornalismo como ramal de romantismo ou de um passatempo diante dos desafios postos? Por isso, jornalismo sempre será uma guerrilha diária pela informação, subproduto de responsabilidade social.
Vistas em retrospectiva, as fotos que me chegam às mãos agora, quase 24 horas após o encontro no Adoniran, mais me convenço de que a vida não teria valido a pena se a argamassa de 25% dos 78% de profissionalismo não houvesse existido. O que teria feito sem alicerce de equipe dividida em especialidades editorais?
PRATELEIRAS DE CIDADANIA
Editorias são departamentos de uma Redação integradas por especialistas. Imagine um supermercado. Espie as prateleiras. Os produtos são discriminados por categorias para facilitar a vida dos clientes. Temos prateleiras numa Redação. Temos produção diária à base de muito sangue, suor e lágrima. Sem esses ingredientes, redações não passariam de instâncias burocráticas. As discussões e entreveros nem sempre eram compreendidos.
Quem já frequentou um vestiário de futebol, dos times vencedores, sabe o quanto a temperatura reflete os números dentro de campo. Times calados são times perdedores.
A sincronia a ferro e fogo garante a edição do dia seguinte. É uma cadeia de produção como todas as cadeias de produção. A diferença é que a massa cerebral prevalece após o apanhado de intensidade operacional.
O sentimento gerado por um encontro numeroso de convidados está muito mais adiante em forma de impacto pessoal do que a aleatoriedade de interlocução acidental ou mesmo programada de individualidades. O coletivo de mais de três dezenas de contemporâneos profissionais no Adoniran remete à multiplicidade de cenários, de contextos entrecruzados, de dimensionalidade abrangente.
PREVISÍVEL E IMPREVISÍVEL
Particularmente para mim – e nesse ponto reafirmo a necessidade de dar um tom pessoal a esse texto – é absolutamente impossível estabelecer qualquer abordagem sem que se considere o valor da vida vivida fora do circuito de previsibilidade da própria vida.
Previsibilidade da própria vida é ingressar no terceiro ciclo da vida, a partir dos 60 anos, carregando na bagagem ocorrências-padrão, empiricamente ou não detectáveis, ou seja, dentro do percurso natural da longevidade ensaiada e já em fase de consolidação – ou seja, de caminho inexorável ao fim da linha.
Entretanto, quando a imprevisibilidade entra em campo, qualquer que seja o campo, há sobrecarga emocional a ditar os passos. Não há como fugir das armadilhas do destino. O futuro sempre chega em forma de presente travesso, quando não indigesto, quando não irreversivelmente dilacerante.
No meu caso a alavanca a mover as peças da maquinaria mental foi aquele tiro em primeiro de fevereiro de 2021. Emergiu meu divisor de águas sensoriais. Aqueles dias de UTI entre a vida e a morte, o longo período de recuperação, a sensibilidade aguçada, tudo isso e muito mais foram a campo sábado passado no Adoniran.
TRAÇADOS DO DESTINO
É impossível não recorrer ao passado recente como fórmula mágica de degustação daquelas três horas no Adoniran. A cada abraço nos convidados de Helena Domingues, nos companheiros de trabalho de dezenas, centenas e milhares de páginas impressas do Diário do Grande ABC, mais e mais me sentia em dívida eterna com o Poderoso.
Não quero nem pretendo parecer ou ser piegas, mas tampouco me permitiria sustentar uma frieza calculada e pretensamente insensível, quando não equilibrada, da boca para fora, no caso do dedilhar de cada caractere deste texto.
Da mesma forma que há mais de quatro décadas jamais projetaria um encontro que a juventude rebelde escorraçaria, porque a juventude só pensa no aqui e agora, tampouco ousaria supor que, naquele leito de UTI, quase quatro anos depois, reencontraria neste plano, nesse andar da humanidade material, tanta gente com quem passei seguramente um dos trechos mais valiosos de minha vida.
O melhor de tudo é que mesmo em prisão domiciliar depois do tiro, porque o tiro ainda se manifesta ao tolher a mobilidade natural do caminhar, embora, paradoxalmente, meu corpo ganhe tração motora nas corridas diárias de oito quilômetros, é impossível conter o entusiasmo por ter retirado daquele encontro combustível motivacional que jamais pode faltar a quem encontrou no jornalismo o pó de pirlimpimpim da própria vida.
Aquelas três horas do encontro no Adoniran enfeitiçaram minha alma. Aquelas três dezenas de desbravadores do jornalismo profissional, representantes vivos e desimpedidos de dezenas de outros, mereceriam mais atenção de uma sociedade que se tornou servil e desorganizada.
HORAS ENFEITIÇADORAS
Os flagrantes dos profissionais de jornalismo em confraternização no Adoniran são documentos tocantes de contextos que não voltam mais. O jornalismo que todos fizeram há muito tempo está morto e enterrado na região.
Complexo de Gata Borralheira (sobre a submissão sociologicamente fundamentada da região diante da vizinha Capital), Na Cova dos Leões (textos de 152 colunas que escrevi em 270 dias de minha segunda passagem pelo jornal), República Republiqueta (sobre a realidade econômica e social da região) e Meias-Verdades (sobre as manobras do jornalismo para enganar os distintos leitores) são livros físicos que traduzem não só em termos práticos aquelas décadas vividas no Diário do Grande ABC, como, principalmente, os percentuais que complementam enigmáticos números absolutos que alguém pode se aventurar a descobrir o quanto são em tempo do calendário gregoriano
E, para encerrar, está na linha de produção provavelmente o livro-síntese de uma vida vivida intensamente: Detroit à Brasileira. Vou contar todos os vetores que fizeram do ABC Paulista uma cópia piorada daquele endereço norte-americano.
Nada disso seria possível sem o pontapé coletivo daquela turma de três dezenas de loucos que tomaram de assalto o Adoniran, além de porções ainda maiores dos que não puderam aparecer tanto vivos quanto ao vivo.