O choque emocional provocado pela morte de Celso Daniel em janeiro de 2002 e premonitórios estragos na regionalidade me levaram, então, a escrever um texto-negação à fatalidade que chocou a política nacional e particularmente uma Santo André tão dependente daquela liderança discretamente invejável.
Pouco mais de 22 anos depois, eis que Celso Daniel acaba de receber a visita eterna de Washington Olivetto, o publicitário genial que naquele mesmo período, escapara de um sequestro de 53 dias.
Escrever o que escrevi e que foi publicado na edição de fevereiro de 2002 de revista de papel LivreMercado, antecessora de CapitalSocial, foi a forma que encontrei para dissuadir as dores da perda do maior, quando não único, gestor público regional que o Grande ABC já conheceu, e festejar uma genialidade do mundo de fantasias publicitárias.
Talvez um psicanalista tenha mais facilidade em descrever meus sentimentos naquele texto. Certamente o profissional da mente confirmaria que estava este jornalista em processo de negação ao decidir juntar Celso Daniel e Washington Olivetto numa improvisada crônica. Dei a Celso Daniel e a Olivetto, naquela crônica, o mesmo destino. Eles escaparam ilesos dos sequestradores.
Tive ontem à noite a ideia de reproduzir aquele texto sem deixar de fazer o que estou fazendo, ou seja, explicar o que se passou e o que se passa, afinal.
Passados mais de 22 anos – isso é importante lembrar e repetir – me sinto privilegiado por ter escrito o que escrevi, por estar escrevendo o que estou escrevendo, por ter desfrutado da experiência profissional de acompanhar um gestor público inovador e dedicado a uma regionalidade sabotada permanentemente e, também, por ter tido a oportunidade de consumir inúmeros textos do grande publicitário que foi embora ontem, uma data especialíssima para quem torce pelo time dos dois, porque 13 de outubro de 2024 são um 13 de outubro 47 anos depois do título de 1977, que tirou o Corinthians da fila de 23 anos no Campeonato Paulista.
Por conta disso e de tantas outras coisas, acho melhor voltar ao encontro onírico do passado. Teria sido muito melhor se Celso Daniel e Washington Olivetto jamais se encontrassem tão cedo, tanto no passado quando agora, exceto num jogo real do Corinthians, esse triplo Corinthians com as mãos em duas copas e os pés no rebaixamento.
Entrevistas coletivas com Celso
Daniel e Washington Olivetto
DANIEL LIMA - 08/02/2002
Celso Daniel não queria reunir a Imprensa para contar o que viveu no cativeiro desde que foi sequestrado nos três tombos, periferia de São Paulo. Achava melhor esquecer o assunto, refazer-se do susto e trabalhar nos projetos administrativos, partidários, acadêmicos e sociais.
Concordou sob pressão do partido, cujas lideranças nacionais usaram o argumento de que suas declarações poderiam ajudar a minimizar o quadro de exclusão social, raiz da criminalidade.
Mas Celso Daniel não abriu mão de um hotel três estrelas de Santo André, a cuja inauguração compareceu poucos meses antes. Queria o máximo possível de despojamento.
MANUSCRITOS
Washington Olivetto gostou da ideia de contar sua saga em solitária de luxo que ninguém há de desejar. Afinal, ele se preparara para tudo. Manuscreveu até um diário sobre a epopeia de ficar emparedado enquanto as negociações para seu resgate fossem concretizadas.
Ainda atordoado com o desenlace do sequestro, Washington Olivetto nem se dera conta de que devia sua vida ao entrevistado em outro ponto da Grande São Paulo. Afinal, não fosse a repercussão provocada pelo sequestro do prefeito de Santo André e coordenador do programa do candidato líder nas pesquisas para a Presidência da República, provavelmente ele seria executado, mais dia, menos dia.
REPERCUSSÃO
O sequestro de Celso Daniel teve repercussão mundial e serviu de combustível a série de anúncios de tomadas de decisão do governo estadual e do governo federal na área de segurança pública.
Foi o rastreamento dos cativeiros que permitiu encontrar Washington Olivetto, depois de denúncia de um vizinho dos sequestradores. Outros sequestrados menos famosos também engrossaram a lista subsequente de libertações.
Os telespectadores não gostaram da decisão de apresentar os dois ex-sequestrados como competidores por audiência. Mas não reclamaram porque pelo menos não foram atrações especiais cujo horário de exibição rivalizasse com Big Brother.
Também os donos das emissoras de TV lamentaram a coincidência de horário e dia, mas trataram de negociar a antecipação das duas entrevistas para o período da manhã, preservando os programas populares movidos à violência ao final de cada tarde.
GANHOS PUBLICITÁRIOS
Argumentaram, antes disso, que os ganhos publicitários e de audiência seriam maiores se a Celso Daniel se reservasse um dia e a Washington Olivetto, outro. Assim, a mídia poderia explorar ao máximo os detalhes das duas vítimas de mundos diferentes, antípodas. Não conseguiram convencer as respectivas assessorias de Imprensa.
Washington Olivetto é filho do glamour paulistano, das lantejoulas frenéticas do universo da publicidade, das colunas sociais recheadas de prazeres dos incluídos, um gênio da criatividade paparicado por produtores de programas de rádio, televisão e pelos agentes comerciais dos jornais e revistas e programadores de mídia que disputam centímetro por centímetro, segundo por segundo, as importantes contas que detém.
HOMEM SIMPLES
Celso Daniel é fruto do chamado provincianismo do Grande ABC, exorcizador do Complexo de Gata Borralheira, é verdade, mas um homem simples, comedido, discreto. Seu universo é a administração pública cercada de demandas sociais por todos os lados. Quer ver aplicada em Brasília sua ideologia de centro-esquerda sem que isso seja interpretado como ambição desmedida. Sim, porque para ele bastava continuar em Santo André, ser prefeito quantas vezes se candidatasse, porque no fundo, no fundo, gosta mesmo é de aplicar na prática o que aprendeu nas leituras incansáveis dos grandes clássicos da teoria política e econômica.
Melhor mesmo seria se, em vez de um dia de diferença entre uma entrevista e outra, se dessem dois ou três, porque assim, após a primeira coletiva, de Celso Daniel, os jornais poderiam repercutir todas as declarações do prefeito recuperado pela polícia.
MAIS AUDIENCIA
Aí, então, viria a entrevista com Washington Olivetto. Por que essa ordem? Porque os alquimistas da audiência fizeram um teste de ressonância ibopeano e descobriram que Washington Olivetto seria um produto mais interessante para o público.
Provavelmente provocaria mais catarse, mais audiência. Seu perfil solto, leve, debochado até, contrastava com a introspecção, a sobriedade e o indisfarçável abalo emocional que Celso Daniel apresentava depois que foi recolhido de calças jeans, as calças que sempre usava, numa favela de Diadema.
Simultaneamente, as duas entrevistas foram vistas por públicos diferentes. Quem gosta de emoção, quem aprecia os programas mais populares que não fazem cerimônia em oferecer corpos estendidos de mortes matadas, fixou os olhos e acoplou os ouvidos em Washington Olivetto.
HOMEM MIDIÁTICO
Seus gestos, seu heroísmo de enfrentar os bandidos, sua facilidade de expressão verbal, tudo contribuía para que se tornasse um entrevistado sob medida para a mídia mais voraz por audiência. Aliás, sua especialidade como comunicador. O primeiro sutiã a gente nunca esquece, lembram-se?
Em Santo André, Celso Daniel era um espetáculo, se se pode dizer isso, para os seletivos apreciadores dos noticiários mais rigorosamente discretos, como os da TV Cultura. Celso Daniel falava com calma, sem gestos, evitava aprofundar-se nos detalhes que marcaram os momentos dramáticos desde que saiu para jantar com o amigo Sérgio Gomes.
Desta vez, ninguém teve a desfaçatez de lhe perguntar nada sobre sexualidade. À volúpia por detalhes do sequestro se contrapunha a frieza de quem era naturalmente discreto e reservado.
UMA OBRIGAÇÃO
Celso Daniel estava abalado demais emocionalmente para fazer da entrevista qualquer coisa que não fosse uma obrigação quase imposta goela abaixo pelas lideranças nacionais do PT. As mesmas lideranças que quase o levaram à morte quando reagiram ao sequestro com a interpretação político-eleitoral de que se tratava de ação retaliadora ao partido. Algo semelhante aos supostos motivos da morte do prefeito Antonio da Costa, o Toninho do PT de Campinas.
A repercussão das duas entrevistas dos sobreviventes destes tempos nada românticos de diligências policiais, nem sempre seguidas de sucesso, foi o que se esperava de fato para um País de ratinização da audiência.
Celso Daniel só conseguiu míseros pontos percentuais de Ibope. Nem poderia ser diferente, porque insistiu em negar canapés de sofrimento pessoal, como se já não bastasse o medo interiorizado, metabolizado e psicossomatizado daqueles dias de terror.
TERRA BATIDA
O quartinho de piso de terra batida e ventilação ofegante, a comida simples de horário nem sempre lógico, a água de torneira, o penico para fazer as necessidades, isso e muito mais Celso Daniel quer esquecer.
Washington Olivetto, descontraído, alegre até, prepara um livro sobre os 53 dias que ficou entre quatro paredes de casa de rico, tecnologicamente preparada para preservar sua vida.
Há quem pense em contratá-lo também para ancorar algum programa de televisão, porque o sofrimento o transformou em herói e sua reabilitação emocional mostra que é um homem pronto para suportar qualquer tipo de confronto. Patrocinadores, evidentemente, não lhe vão faltar. É um dos homens de ouro da propaganda brasileira e isso ajuda a direcionar os anunciantes para onde seu bom senso indicar.
PROGRAMA PRÓPRIO
É claro que, dada sua versatilidade e poder midiático também no vídeo, algo que desconhecia, não há como deixar de ouvir o apelo dos próprios anunciantes para que anuncie sim em seus próprios programas. Talvez Washington não aceite, porque é um homem sobre cuja ética profissional não há reparos a fazer.
Celso Daniel continua sua vida de administrador público inigualável no Grande ABC, sua carreira de professor, seus jogos de basquetebol e seu apoio à disputa eleitoral de Lula da Silva.
Diferentemente de Washington Olivetto, mobilizador de recursos de grandes corporações em busca de novas fatias do mercado de consumo, Celso Daniel espera minguados e disputadíssimos recursos financeiros internacionais para investir em projetos sociais em favelas. Pode virar ministro de Estado ou mesmo governador de São Paulo num futuro breve. Substituirá a escassez de audiência do show business da mídia pela abundância de votos, num milagre pouco explicado porque jamais vestiu a fantasia de populista.
Talvez qualquer dia destes Celso Daniel e Washington Olivetto se encontrem ocasionalmente num estádio qualquer, torcendo pelo Corinthians. Aí eles serão absolutamente iguais na paixão, nos gestos, no amor alvinegro.