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Sociedade

DANIEL LIMA - 18/09/2024

Já vivi o suficiente mas não o necessário e desejado para chegar com desencanto a uma conclusão central a respeito destas terras que me receberam vindo do Interior do Estado na carroceria de um caminhão de mudança. E a conclusão é a seguinte: vivemos na região (e vou me restringir ao espaço em que vivo há muito tempo) uma crise de reposição de cabeças pensantes e corpos atuantes. Enquanto isso, abundam exemplares sabotadores do futuro.

As eleições municipais com guerras e guerrilhas podem induzir a erro de avaliação de que somos uma sociedade municipal e regional dinâmica. Nada disso. As forças políticas que se movem nestes dias em embates democráticos são mobilizações seletivas, ditadas pelo desejo de conquistar votos.

Durante períodos anteriores, entre uma eleição e outra, o que mais prevalece é a acomodação geral e irrestrita. Não há iniciativas para construir alternativas factíveis longe das sombras do Estado, no caso dos municípios. 

RUPTURA   GERACIONAL

Vivemos ruptura geracional no campo social, econômico e institucional. A quebra da mobilidade social à reboque da desindustrialização fermentou o esgarçamento  da cidadania.  Os motores de arranque econômicos sofreram processo de funda desaceleração, em associação com a reduzida  oxigenação de movimentos sociais.

Você vai entender o que quero dizer e vou dizer porque não dizer o que estou pensando, sobre o qual já escrevi tangencialmente, seria omissão imperdoável.

Minha pauta para a edição de hoje era outra, uma pauta sobre a qual me dediquei ontem à noite. Entretanto, como é uma pauta muito complexa e meu dia programado parece um pouco acima do ritmo normal, decidi deixar engavetado no computador o que já escrevi e partir para esse desabafo.

Meu desabafo é o que você entendeu ou deve ter entendido nos primeiros parágrafos. O Grande ABC está se tornando um deserto de talentos e revelações porque o Grande ABC da mediocridade tomou de assalto as instâncias públicas e privadas que poderiam despertar a sociedade em geral com bons exemplos.

SOCIEDADE DE ARAQUE

Sociedade em geral sempre será uma força de expressão quando se tratar do ambiente regional subdividido estupidamente em sete partes. Sociedade em geral pressuporia um mínimo de organização e liberdade de ações.

O que temos na região é uma espécie de Big Brother do mal, porque se vigiam atentamente, quando não se perseguem, eventuais desencaixes do sistema ditatorial de enquadramento nos rigores dos mandachuvas e mandachuvinhas de plantão. Os opositores que se colocam nas disputas eleitorais praticamente se calam ou se acomodam do jeito que é possível nas hierarquias formais e informais de poderosos poderes.  

Embora me refira ao que acompanho nas redes sociais e nos jornais de papel para tomar o pulso da avacalhação geral que contamina o Grande ABC, n em precisaria disso. O dia a dia em condições normais é revelador.

Se fizesse observações exclusivamente com base nesses tempos, estaria acentuando ou anabolizando uma deformação coletiva que distorceria a realidade dos fatos. E a realidade dos fatos é que estamos de mal a pior como sociedade e por isso mesmo não precisamos acrescentar circunstâncias à estrutura orgânica das supostas lideranças.

VIDA REGIONAL

O problema maior de viver mais que uma metade de século e de estar no jornalismo há tanto tempo é que passamos a acionar o gatilho crítico da contraposição, da comparação, da verificação de qualidade coletiva e individual de forma mais exigente, quando não contundente, que profissionais de outras áreas.

O jornalismo independente e que não se presta a assessoria de imprensa impõe regramento avaliativo das coisas e dos autores das coisas que a pessoa física provavelmente descartaria.

Se existe algo que detesto pessoalmente é me preocupar como a vida dos outros. A liberdade individual não tem preço. O tormento que me assola é que, como jornalista tenho obsessão por avaliações, assim como  pastores pela Palavra de Deus e os centroavantes por bola na rede.

Quando disparo minha outra personalidade, de dupla personalidade que sou, o bicho sempre pega. Dupla personalidade, no caso, não é esquizofrenia de literatura médica, mas autoavaliação pessoal de quem é uma coisa como tutor de duas cachorras e outra coisa como profissional de décadas de trabalho.

E nesse caso volto à origem: o Grande ABC está-se tornando um deserto de lideranças transformadoras, embora no passado também não tenha sido um celeiro de craques. Está certo que eram poucos os craques, mas os tínhamos, e o que vinha numa escala logo abaixo não eram pernas de pau. Havia uma massa relativamente promissora.

Tivemos sempre mais talentos individuais do que organizações coletivas de destaque, mas nestes dias o que encontramos é uma safra de individualidades horrorosas quando o referencial é o que me inspirou a nominar esta publicação. Sim, em matéria de capital social somos uma lástima. Sociedade, Empreendedores e Gestores Públicos não se entendem. Pior que não se entenderam é quando se entendem, em detrimento do conjunto da população.

Vou mais longe: muitos  representantes desses setores, ou potenciais representantes, não expressam o conjunto do ambiente municipal e regional. Salvo raras exceções, são egoísticas, predadores, oportunistas e tudo que você poderia encontrar no léxico de responsabilidade social, embora finjam-se salvadores da pátria regional.

FALTAM EXEMPLOS

Insisto em afirmar que estou desabafando numa manhã de um dia intenso que devo ter, algo a que não me submeto há muito tempo porque o tempo passou a ser um bem mais precioso do tempo que tenho a dispor. Mas, sempre que me sinto pressionado pelo tempo que passa cada vez mais rápido, decido puxar o gatilho do desencanto com a região.

E posso puxar o gatilho do desencanto quantas vezes quiser. Sou confessadamente o mais estúpido dos estúpidos da região. Ou alguém não pode submeter-se a uma autocrítica sincera porque reconhece que insiste em perder tempo com a aridez de cidadania da quase totalidade de agentes públicos, privados e sociais?

Faltam ao Grande ABC exemplos de que é possível enxergar o horizonte de médio prazo com esperança. Há um controle das ações que de fato são inações de capital social cujos executores contam com recursos materiais e estruturais para subjugar  no nascedouro quem ousar quebrar o ritual de apropriação imperialista dos valores  locais.  

DISPERSÃO DAS REDES

Por enquanto o que temos para o almoço de contradições e o jantar de tiros no pé é a ramificação de endereços de redes sociais que se mantêm vigorosas na arte da dispersão inócua ou apuram o foco em questões específicas sem aparente capacidade sinérgica de transformação.

O caráter dispersivo das redes sociais está imantado de tal maneira na sociedade que os participantes das disputas virtuais levam a engano notório, porque parecem, em muitos casos, exemplares extraordinários de rebeldia construtiva.

Entretanto, na maioria dos casos, a indignação se limita a alvos extramunicipal ou regional, e se localizam em instâncias de poder estadual e federal que não custam nenhuma dor de cabeça aos críticos do mundo digital. Enfrentar os poderosos de plantão é outra história. Os desdobramentos são uma coleção de transtornos.

A focalização das mesmas redes sociais em questões específicas, temáticas, de interesse restritivo próprio, como, por exemplo, problemáticas condominiais e também passivos de zeladoria pública no atendimento a determinadas localidades, transmite a falsa impressão de que um levante com olhares mais amplos estaria sendo adubado. Bobagem. São apenas questões de legitimidade dos contribuintes que estão em jogo.

BONS TEMPOS

Tomara que o Grande ABC esteja vivendo apenas mais uma etapa de marasmo social, depois de, entre meados da última década do século passado e os primeiros anos deste século, ter desfilado situações que esparramaram perspectivas de mudanças.

Foi o período em que o Fórum da Cidadania sacudiu instituições municipais e regionais, mesmo com imperfeições e baixa capilaridade. Vivemos, então,  dias de intenso otimismo a ponto de despertar o potencial de um dos mais brilhantes gestores públicos da história da região, o então prefeito Celso Daniel, responsável pela criação e consolidação de organizações públicas como o Clube dos Prefeitos, a Agência de Desenvolvimento Econômico e  a Câmara Regional.

Lamentavelmente, tudo foi à bancarrota. Inclusive o ainda malandramente incensado Clube dos Prefeitos.

Uma sociedade incapaz de reagir ao comando arbitrário, interesseiro, voraz e exclusivista de falsas lideranças sociais, econômicas e públicas, é uma sociedade condenada a patinar repetidamente.

Não sairemos dos embaraços econômicos que nos impactam e se agravam há quatro décadas com esse modelo de mandonismos centralizados que impera em todas as localidades da região. Somos três milhões de pessoas submetidas ao torniquete de não mais que uma centena, se tanto, de usurpadores de poderes legais e informais.

TUDO DOMINADO

Estamos completamente dominados por grupos organizados. As exceções só confirmam a regra e a regra é objetivamente clara: é indispensável manter a dispersão da sociedade para que os poderosos de plantão e também os pretensos poderosos que pretendem estar de plantão possam reinar sem complicações.

Estamos dominados em todas as instâncias. Inclusive em endereços constitucionais na aplicação de Justiça. Quem acha que o Brasil é o fim da picada certamente não conhece o Grande ABC e suas entranhas. Aqui, por ser periferia de metrópole, a gravidade do quadro institucional é muito mais angustiante. Ao mesmo tempo em que se emite a certeza de que internamente jamais sairemos do estágio de degradação, dependemos de esferas mais poderosas, no âmbito estadual e federal, flagrantemente engessadas, quando não em processo de aniquilamento.

Resumo da ópera: se você é descrente no futuro do Brasil, uma desconfiança que vem de longe e parece perpetuar, sinta-se privilegiado porque a projeção para o Grande ABC possivelmente será menos dramática. O paradoxo é facilmente explicado. Afinal, já chegamos ao fundo do poço em forma de sociedade que não existe nem como sociedade e muito menos como sociedade organizada, como a maquinaria de controle das instâncias pretende vender a farsa em forma de engabelação.



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