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Sociedade

DANIEL LIMA - 11/09/2024

Especialistas em envelhecimento saudável recomendam e enfatizam a importância de interação social. Interação social é você estar cercado de pessoas.. O isolamento seria um veneno à cognição e à razão, quando não ao coração.

Isso tudo significa que quem já alcançou determinada faixa etária está entre a minoria da população do planeta com um pé na barca da esperança e outro na cova larga. Portanto, deve cuidar da saúde mental e física em frequentes encontros pessoais e atividades recreativas.

Estou fora. Ou melhor: estou dentro, mas não da forma de recomendação-padrão. Quem tem mais passado do que horizonte sabe que cada minuto é valiosíssimo. E que, portanto, não pode ser desperdiçado. Sobremodo ao seguir à risca recomendações padronizadas que, portanto, ignoram especificidades. Até parece que todos são iguais ou semelhantes. O envelhecimento é uma arte de depuração que torna flexível qualquer coisa que se tente definir como ideal coletivo.

COMPANHIAS DIÁRIAS 

Minhas interações com humanos  são predominantemente específicas e das quais não abro mão um dia sequer. A exceção se dá apenas em situações críticas. Tanto na luta pela vida numa UTI após um tiro como nocauteado pela dengue.

Fora essas condições muito próprias, ninguém rouba minhas companhias diárias que chegam de madrugada em três desembarques barulhentos. Talvez seja um grave erro, mas é assim que sou, que posso fazer?

Minhas companhias diárias começam a chegar às seis horas da manhã e só se retiram por volta da meia noite. Tudo começa de madrugada quando  motociclistas lançam portão acima meus convidados de sempre, os colunistas e colaboradores de três das quatro publicações que assino.

De vez em quando o lançamento é afoito e eles, meus convidados colunistas, se esborracham no portão de ferro.  Quando chove, então, é uma tormenta. Muitos se tornam tão humilhantemente úmidos que os dispenso. Procuro-os na versão digital. Não gosto de acompanhá-los na versão digital, porque digital lembra preservativo. Quem entende do ramo sabe o que isso quer dizer. Experimente comer um chocolate com papel e tudo. 

ATIVISTAS CEREBRAIS

Sei que meus convidados sofrem mesmo quando chove. E um deus-nos-acuda. Ficam encharcados se não forem duplamente protegidos. Nesse caso, de dupla proteção,  dou um jeito de recolhê-los como bom samaritano, seco-os e lhes ofereço o carinho de um dobrar de páginas meticulosamente organizado. E os acomodo ao desfrute.

Conheço meus convidados detalhadamente. São ativistas cerebrais de várias tendências político-ideológicas e econômicas, quando não sociais. Gente do mundo inteiro desembarca na minha garagem. Tudo de primeira linha no mercado de intelectualidades. Gente que pensa.

Alguns desses convidados não me satisfazem, mas os consumo porque há sempre o que aprender e a conferir. Ler apenas o que se aprecia é um erro. É preciso dar vez ao contraditório, porque o contraditório nos faz avançar inclusive quando recusamos o próprio contraditório. Afinal, não é porque é contraditório que se está na cara do gol do conhecimento agregador.  

FÍSICOS E DIGITAIS 

Os colunistas e colaboradores dos jornais físicos (e também digitais) são meus melhores amigos de papel. Além de me ensinarem muito não reclamam da vida, do coração que anda falhando, das pernas que doem porque não fazem exercícios como faço, não têm pressa para cumprir a agenda numa clínica médica, tampouco se irritam com qualquer coisa.

São meus amigos de papel que falam sem falar porque escrevem e se retiram da cozinha, da sala, de qualquer porção de minha casa. Nada nos atrapalha. Talvez esteja errado ao dizer que se retiram ou se afastam de mim, porque reconhecem minha liberdade de escolha e de pensamento, minha mobilidade caseira. Afinal, como dizer que se afastam se cada um deles faz parte de minha vida como educadores de múltiplas especialidades?.

QUESTÃO DE ESCOLHA

Acho que é muito melhor, como média de pensamento de ocupação diária, não como definição de vida, me envolver com essa turma do que ficar num shopping, num supermercado, na calçada, falando a mesmice comportada de sempre, ou ouvindo as mesmices comportadas de sempre.

Transformar tudo isso em rotina como o faço com meus convidados de papel seria a consagração da inutilidade. Não haveria termos de comparação, de aprendizagem.

Aprendo com meus convidados de papel  a cada dia os segredos de várias artes. Sou insaciável. Devoro os temas aos quais sou exposto quando recebo meus amigos e minhas amigas em forma de páginas físicas de jornais. Eles não sabem, mas os devoro com olhar crítico, com sede de conhecimento e com enorme interesse de desmascarar quem tenta me levar no bico.

E olhem que não falta quem queira me levar no bico, inclusive em línguas outras. Os melhores colunistas de publicações norte-americanas desembarcam em casa ou os capturo em sites específicos, já traduzidos.

Conheço os vieses de cada um, sejam nacionais ou internacionais. Há sempre interesse escorregadio ou escancarado a averiguar e a filtrar. Ninguém escreve simplesmente por escrever mesmo que escrever seja uma terapia.  Como no meu caso. 

MUITOS NOMES

Numa conta simples, nada especulativa, diria que tenho pelo menos 50 convidados de papel ou digitais a bater um papo profundo durante a semana. Agora pergunto, com toda a franqueza: que espaço físico contaria com interatividade social brandida pelos especialistas em comportamento social, em combate ao envelhecimento?

Meus amigos e minhas amigas impressas nas páginas físicas de jornais não imaginam o quanto os respeito mas também o quanto os desafio, porque minha mente está sempre acesa, pronta para exercer contraposições de quem sabe como se faz jornal, como se manipula com jornal, como se joga para a plateia com interesses nem sempre nobres.

Acho portanto que interação social para tornar a vida vivida e experiente mais produtiva e saudável, longe de doenças que um dia sempre chegam, pelo menos chegam para quem vive o terceiro ciclo da vida, acho portanto, repito, que interação social tem que ser algo semelhante aos meus amigos do peito e de cérebro que me visitam todos os dias.

CADA UM É CADA UM

É preciso contar com conteúdo, porque sou exigente com aquilo que meto na minha cabeça. Acho que a vida vivida uma única vez, mesmo depois de darem-me como morto, ou quase lá, tem de ter desafios pessoais e profissionais.

Quem entrega o ouro da desistência ou da complacência, quando não da indigência intelectual, está fadado a vegetar. Mas isso pode ser uma grande besteira. Cada um é cada um e suas circunstâncias. É preciso admitir e respeitar essa variável. Tanto quanto meu modo de viver, que pode ser uma porcaria de modo de viver para muita gente.

Portanto, e repetindo, são dezenas os convidados que recebo em casa todos os dias, todos os dias da semana, todos os dias dos meses e dos anos. Sei a gênese técnico-ideológica de cada um. Eles aparecem na minha vida intelectual como num filme individual, porque o que vou consumir hoje tem um histórico do que consumi anteriormente. 

O bom é que eles são coerentes, embora alguns, nesta altura do campeonato nacional de políticas públicas, inclusive fiscais, além da conjuntura internacional, estejam embaraçados com o apoio que deram em nome da democracia e agora se veem entre a cruz de desilusões e a espada da perplexidade.

A Internet não perdoa, mas meus convidados de papel muitas vezes passam despercebidos, porque papel é uma coisa, tela de smartfones é outra coisa. O audiovisual é produto popular, com repercussão popular. O papel é uma moça mais bem educada, de fino trato, passível de deslize muitas vezes mais graves, mas é uma moça educada, de baixa capilaridade crítica.

MOÇA EDUCADA

Meus convidados só  perdem mesmo, e mesmo assim sem larga desvantagem, para os mais próximos dos familiares. Mas mesmo assim confesso o quanto sou aparentemente relapso, e por isso criticado. Tenho apenas um neto, que mora nos Estados Unidos e de vez em quando aparece no Brasil e na minha casa.

Talvez não dedique a ele o que me cobram porque tenho filosofia de vida que carrega a liberdade como peça imprescindível. Criança gosta de brincar e interagir com criança e criança não falta para o Gael se divertir.

Talvez ele um dia entenda, mais que seus pais e outros mais, que o avô não era o que eles sempre cobram porque o avô sabe que criança e adultos são uma opção alternativa a crianças que gostam mesmo de crianças.

Se você acha que estou manipulando a verdade para me defender do crime de leza-família, provavelmente estará certo. Mas como vou me virar nos trinta pessoal se não encontrar justificativa à prioridade dedicada aos convidados  diários de papel?

COMPARTIMENTADOS

Ainda sobre meus convidados diários de papel, passei a separá-los pós-leitura em compartimentos específicos. Uma estrela significa descarte próximo, duas estrelas a duração do resguardo para consulta em no máximo 15 dias. Três estrelas já chamam a atenção a eventuais consultas mais frequentes. Quatro estrelas significam prioridade a eventual releitura e eventuais menções. Cinco estrelas é arquivo na certa.

Não me vejo operando de maneira análoga com pessoas físicas, as quais também dividiria em pastas-perfiz e com as quais estabeleceria relações relâmpagos ou, em última escala, duradouras. Isso não quer dizer que não tenha com quem conversar fisicamente, com quem tomar um café num shopping, essas coisas de simples mortais. Mas essa variável é de baixa frequência.

A vida de jornalista limita a vida da pessoa física. O jornalismo é meu eixo existencial e como tal causa auto restrições e também deliberados afastamento de terceiros.

Embora uma coisa e outra coisa sejam duas coisas distintas, não falta quem as confunda, mesmo que divida muito bem dividido o pessoal do profissional.

Sorte mesmo é que o aplicativo WhatsApp me coloca na companhia de dezenas de humanos todos os dias. Temos uma relação muito  próxima e esclarecedora em vários pontos. São dois mil contatos na palma da mão. A qualquer momento a porta é aberta. De vez em quando arrombada. 

GESTÃO SOCIAL

A maioria de minhas companhias digitais é respeitosa, atenciosa e cooperativa. Raros são os elementos deletérios. Há gente de todo o tipo e todo tipo de gente atendo com carinho, mesmo paus mandados  que insistem em provocações e aliciamentos desonestos.

Meus convidados do aplicativo, e também aqueles que integram grupos que não contam com qualquer influência organizacional minha, contribuem para me aproximar do conceito de gestão social defendido por craques da psicanálise, entre outras especialidades.

Acho que praças públicas,  shoppings, mercados, essas coisas de vivência tradicional, não fazem tanta falta porque inventaram esses aparelhinhos malucos.

Meus convidados de papel provavelmente também tenham razões para reclamarem mais prioridade. Eles sabem que três ou quatro tardes por semana vou a um supermercado comprar alguma bugiganga alimentar como desculpa para espiar fisicamente, sensorialmente, o comportamento dos humanos.

Quem acha que supermercado e shopping expressam apenas consumismo não sabe o que são meus olhos e minha mente sempre atentos a apurar comportamentos. Os humanos são um barato. Eu os amo e não quero perder a companhia deles nos próximos 30 anos. 

SEQUESTRO DÓCIL

Por essas e outras que, rigorosamente, todos os dias, de manhã, de tarde e de noite, me entrego também ao sequestro dócil e colaborativo de minhas duas cachorras. Lolita e Luly são companhias quase inseparáveis no cotidiano.

Minha agenda está condicionada à agenda delas. O bom de tudo é que elas não sentem ciúmes de meus convidados de papel. Podem até não entenderem exatamente o que faço no silencio atencioso e cuidadoso da leitura, mas são educadas e não reclamam.

Diferentemente disso: tiram sonecas prolongadas e atentas a eventual movimentação rumo à cozinha, de onde sempre esperam por alguma coisa suplementar à refeição. Sei que as estrago com tanto carinho. Minha filha é severa. A cozinha é um território ameaçador às minhas cachorras quando minha filha está no mesmo ambiente. Sou um tutor relapso. Tudo calculado. Prefiro ser um perdigueiro com meus convidados de papel ou digitais.

Meus convidados de papel com a logomarca da Folha de S. Paulo ainda estão sob a mira de afastamento, como o fiz com meus convidados de papel do Estadão. Deixei de assinar o Estadão de papel e me fixei no Estadão digital quando decidiram mudar o formato de padrão convencional pelo mais estreito e alongado. Agora a  Folha seguiu a mesma trilha. Estou pensando em repetir aquela operação. 

GOLPE DA FOLHA

Mas não estou muito propenso a suspender a assinatura da  Folha de S. Paulo. Me sinto um otário porque o formato, as letras menores, a dificuldade de manusear segundo o modelo de leitor que sou, tudo isso atrapalha a metodologia que utilizo para fazer de leitura uma constante rotina. O pior da Folha de S. Paulo não foi fazer a mudança que fez, mas enganar leitores com matérias sob o controle de marqueteiros que querem me fazer crer que acertaram.

Podem ter acertado para a maioria dos leitores que, confessadamente, não passam de 30 minutos diários como consumidores das informações. Para mim e meus convidados especiais de papel, cinco horas médias diárias de conhecimentos, críticas, desmascaramentos e tudo o mais é o mínimo. Jornalista que lê menos que isso a cada dia é jornalista meia-boca. E abundam jornalistas meia-bocas por aí. Qualquer outra profissão levada a sério exige dedicação absoluta.

Por isso que meus convidados de papel (e também os digitais) merecem toda a atenção. Posso, repito, não gostar de muitos, posso ter meus preferidos, posso até deixar alguns na fila sabendo como sei que eles podem esperar, porque são especiais, mas não abro mão de lhes entregar minha alma profissional. É assim que funciona.

São falsos humildes aqueles que não têm quase nada e se arvoram de sabe-tudo. São falsos arrogantes aqueles que leem muito, escravizadamente muito, e não usam de suposta humildade para vender desprendimento e simplicidade.

Conhecimento precisa ser compartilhado, mesmo a contragosto de um ou outro submetido a radicalismos. Sou o somatório de muitos que vivem às turras nesse mundo polarizado. Navego entre pedras e rochedos. Uma aventura diária maravilhosa. Veja parte da turma que invade minha vida. No papel e no digital. 

((Michael Stott, César Felício, Tostão, Juca Kfouri, Carlos Pereira, Roberto Da Matta, Marcelo Godoy, Rubens Barbosa, Denis Lerrer Rosenfield, Ignácio de Loyola Brandão, Leandro Karnal, Pedro Malan, José Roberto Mendonça de Barros, J.R. Guzzo, Celso Ming, Bolivar Lamounier, Fernando Reinach, Fabio Giambiagi, Eugênio Bucci, William Waack, Henrique Meirelles, Alexandre Schwatsman, Felipe Salto, Gustavo Loyola, José Eli da Veiga, José Júlio Senna, Maria Cristina Fernandes, Marli Olmos, Nilson Teixeira, Pedro Cafardo, Mônica Bergamo, Ruy Castro, Elio Gaspari, Tati Bernardi, José Simão, Vinicius Torres Freire, Joel Pinheiro da Fonseca, Igor Gielow, Marcos Mendes, Igor Patrick, Marcos Augusto Gonçalves, Ubiratan Brasil, Bernardo Guimarães, Luiz Felipe Pondé, Ronaldo Lemos, Débora Bizarria, Wilson Gomes, Rodrigo Zaidan, Adriana Fernandes, Marcos Mendes, Paulo Vinícius Coelho, Augusto Nunes, Lúcia Guimarães, Conrado Hubner Mendes, Demétrio Magnólio, Martin Wolff, Josias de Souza, Ana Paula Kenkel, Mauricio Stycer, Gustavo Franco, José Márcio Camargo, José Pastore, Raul Velloso, Demi Getschko e Pedro Doria)



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