Clique aqui para imprimir




Regionalidade

DANIEL LIMA - 29/08/2024

Grande ABC,  ABC Paulista ou qualquer denominação que se atribua aos sete municípios locais é o atestado de óbito da Cidade de João Ramalho. Uma cidade que existiria não fosse o movimento emancipacionista que retalhou uma regionalidade dispensável, porque fora da carta de baralhos da racionalidade de gerenciamento desse território de 800 quilômetros quadrados. Afinal, teríamos apenas um endereço, não sete pedaços desiguais, conflitivos e contraproducentes.  

João Ramalho seria a terceira cidade mais populosa do País, com potencial imenso em várias áreas conectadas em ramais de origem e destino únicos. Só São Paulo e Rio de Janeiro seriam maiores. Brasília ficaria um pouco abaixo.

João Ramalho, a cidade destruída, virou um puxadinho da Capital e germinou o Complexo de Gata  Borralheira com divisões auto sabotadoras a diminuir ainda mais seus valores. Uma cidade destruída que comete o equívoco anual, multiplicado por sete, de comemorar o próprio sepultamento de competitividade em todos os setores.

ROMANTIZAÇÃO

Quem considera descontextualizados no tempo os efeitos agressivamente perniciosos da Cidade de João Ramalho dividida por sete e com novas denominações está cedendo a racionalidade em favor de ambições políticas  cristalizadas nas mobilizações libertadoras mas transgressoras da eficiência desse conglomerado de quase três milhões de habitantes.

Aqueles movimentos separatistas romantizados como expressão de qualquer coisa que lembre heroísmo cidadão ou coisa que o valha não passam de trapos diante da tapeçaria que retirou de cena uma João Ramalho uniforme e com tração para enfrentar os desafios que se acumulam em forma de fracassos.

Não existe motivo para comemorações que sempre aparecem em louvação aos emancipacionistas. Em todos os sentidos que se coloquem na mesa de avaliação desapaixonada aquilo que se tornou uma cova de sete metros de profundidade às aspirações de evolução social e econômica constante ao longo de décadas, numa energia humana que retroalimentaria a maquinaria social, o fraccionamento político-administrativo é um horror.

FESTA AO SEPULTAMENTO

Transformar em comemorações redentoras o que era  uma única cidade fisicamente conjugada, nas quais as divisas territoriais só apareceram e permanecem porque assim o quiseram os libertadores das próprias vontades pessoais ou grupais, revela a distância que separa o todo do fraccionado.

Na Economia, no Social, na Estrutura de esfera do Estado Municipal, na Sociologia, no Trabalho, em tudo que for importante esse mosaico de sete pedaços precisa ser escrutinado como gênese de tudo que faz destas terras Grande ABC ou ABC Paulista, mas jamais atingirá o desembaraço de João Ramalho.

Já escrevi muito sobre essa conta de multiplicação político-administrativa que redundou numa equação final desastrosa ao abrir as portas a oportunistas e janelas a arrivistas analfabetos em matemática e em sociologia.

A soma das partes separadas jamais será a multiplicação de fatores da unicidade territorial de origem. João Ramalho será sempre um espectro a aterrorizar os oportunistas que só pensaram no próprio umbigo municipalista.

VANTAGENS SUFOCADAS

Nenhuma vantagem supostamente obtida por um ou mais territórios desembaraçados pelos plebiscitos de metade do século passado resiste a questionamentos que trafegam distantes de paixões.

A criação do Clube dos Prefeitos, oficialmente Consórcio de Prefeitos, desencantou de imediato seu próprio criador, o então prefeito Celso Daniel, pouco antes de terminar o primeiro mandato, em 1999.

Ao reforçar o organismo debilitadíssimo em 1996, quando voltou a se eleger prefeito, Celso Daniel fez de tudo até constatar que não poderia fazer mais nada diante do separatismo vigente naquela entidade. João Ramalho estava morto e enterrado de vez. Ressuscitá-lo é obra dos ingênuos ou de charlatães. Os sete pedaços sempre fingiram ajuntamento. A concorrência explícita ou dissimulada sobrepõe-se a tudo.

CIDADE FICCIONAL

A institucionalidade da Cidade de João Ramalho, mesmo sob o manto diversionista de Grande ABC ou ABC Paulista, jamais saiu da estrada vicinal de sacolejadas improdutivas.

A cidade ficcional de João Ramalho carrega o peso insuperável do sete nas costas. Não se consegue nem um efeito de freio de arrumação que sinalizaria destino diferente da individualidade municipalista como cláusula de salvação de interesses na maioria dos casos mesquinhos.  

Se antes e durante muito tempo a integração regional proposta pelo Clube dos Prefeitos sempre estilhaçado pelo municipalismo já não oferecia horizonte seguro, imagine agora, desde recentemente, ao se tornar uma cidadela atraente a sonhos político-partidários. O Clube dos Prefeitos virou um reduto de manobras de ocasião, sempre de olho na próxima eleição e, mais que isso, em saltos de carreiristas políticos.

PERDE-PERDE

Não é preciso refletir demais para entender a que ponto o jogo das sete cidades é um jogo de perde-perde,  não de ganha-ganha. Só no âmbito da Administração Pública, as sete prefeituras seriam apenas uma, os Legislativos igualmente seriam um e não sete, os vereadores não seriam quase uma centena e meia, ante menos de cinco dezenas. Quantas secretarias seriam eliminadas? Quanto dos custos de recursos humanos iriam para o descarte? Pense nisso. Mas tudo isso é pouco.

Mais que despesas que jamais constariam do orçamento da Cidade de João Ramalho surrupiada, a engenharia do planejamento público passaria por vigorosa repaginação.

Por mais que João Ramalho viesse a ser um espelho da gestão estatal sempre deficitária em todas as esferas de poder, haveria a garantia de que os dispêndios nas mais diversas rubricas seriam inferiores e menos dispersos do que o na soma de sete cidades da Cidade de João Ramalho que não existe. Simplesmente porque  sete gestões separadas e dispersas nas técnicas de sistematização de projetos, obras e manutenção, são fontes compulsórias de desperdícios.

PERDAS INCALCULÁVEIS

É incalculável o quanto se perde ou se deixa de ganhar em gestão pública com o separatismo da Cidade de João Ramalho que existiu um dia. Os custos elevados existem tanto no que se aplica de recursos públicos multiplicados por sete sem a eficiência do conjunto separado quanto no que se ganharia com medidas inovadoras articuladas e executadas num único espaço territorial e sob um único planejamento, articulação, motoramente e execuções.

Não dá para esquecer que a Cidade de João Ramalho que um dia poderia ter resistido ao corte e recorte territorial e administrativo evitaria que um investimento visceral num determinado espaço evitasse a fragilização de outro espaço no mesmo território.

Um exemplo seria o arbitramento técnico-econômico do impacto da chegada da Rodovia Anchieta numa São Bernardo que não existiria em relação à Avenida dos Estados numa Santo André que também não existiria. A estrada que leva ao Porto de Santos impactou duramente o futuro de Santo André ao perder a disputa de competitividade logística para São Bernardo. 

FRAGMENTAÇÃO AUTOFÁGICA

Seria desprezível demais imaginar que numa Cidade de João Ramalho gerenciada por uma única administração pública, porque seria uma cidade apenas,  não houvesse um único executivo público a detectar o choque que a Anchieta provocaria no uso da  Avenida dos Estados e a consequente desindustrialização acentuada de Santo André.

Como a  Cidade de João Ramalho foi dizimada pelos emancipacionistas celebrados como heróis do municipalismo canibalesco, estava reservado no futuro que chegou um novo impacto a estiolar ainda mais a geoeconomia local, com a chegada do Rodoanel e suas restrições de acesso. 

Principalmente  São Bernardo mais próxima do traçado fechado na região, sofreu e segue sofrendo as dores de uma competitividade dura de uma região próxima da Cidade de João Ramalho que não existe, no caso a Grande Oeste, com Osasco e Barueri como destaques. Uma Grande Oeste de também sete municípios, que jamais poderiam ser uma espécie de  cidade única como João Ramalho porque não tem e nem teria as mesmas características ocupacionais de cidades que se confundem como cidade única.   

SILÊNCIO E FESTA

O esquartejamento territorial da Cidade de João Ramalho jamais mereceu estudo crítico. O Grande ABC tem horror a se defrontar no espelho de contrapontos. Nada surpreendente. O Complexo de Gata Borralheira impede o debruçar sobre os reais problemas que afetam a sociedade.

O festival de bajulação institucional lembra os músicos do Titanic. Mais que isso: quem tem coragem de apontar caminhos diferentes acaba isolado.

Contrariamente a isso, a plateia de formadores de opinião e tomadores de decisão na região cultiva paixão mesmo é pelo politicamente correto.

Não foram poucas as autoridades públicas nacionais que, recepcionadas com pompa e circunstância, derramaram elogios à região economicamente decadente.

A Cidade de João Ramalho que não existe carrega no ventre da psicologia social uma necessidade de negar o inegável e quando aparece alguém para confirmar a fraude, porque bajulador ou tecnicamente ignorante, dá-se ao desfrute da gratidão não pelo evidente equívoco, mas por dividir com todos a culpa de compartilhar fracasso sob a roupagem de sucesso.

ALCKMIM BAJULADOR

Um caso emblemático do quanto a região que jamais será Cidade de João Ramalho procura socorro nas águas de um triunfalismo cada vez mais patético foram as declarações do então governador do Estado, Geraldo Alckmin, em 2012.

Durante a inauguração do trecho sul do Rodoanel, Alckmin declarou que São Bernardo se transformava na esquina mais importante do Brasil. O trecho sul do Rodoanel é o carrasco mais recente, mas não o derradeiro, da derrocada econômica da região. A desindustrialização regional se acentuou desde então, ao favorecer a Grande Oeste, de Osasco e Barueri, além de outros cinco municípios. 

O fato é que o então governador Geraldo Alckmin distribuía o título de melhor esquina do Brasil como os turistas reagem aos pombos nas praças italianas, atirando alimentos para a farra geral. Escrevi em agosto de 2019 sobre isso. Não custa nada reproduzir parte daquele texto: 

 Ainda há quem acredite na lorota do então governador do Estado, Geraldo Alckmin, de que o Grande ABC, com o trecho sul do Rodoanel, tem a melhor esquina do Brasil. Ainda outro dia o Diário do Grande ABC enfatizou aquela frase como um dos valores a ser explorado em potencial de crescimento. Deu corda a algo que o tempo provou ultrapassar a fronteira da bobagem. Fui à cata de declarações de Geraldo Alckmin a propósito do assunto e descobri algo que, duvido, os leitores resistirão a boas gargalhadas: pelo menos quatro outras localidades receberam idêntica definição. Ou seja: o tucano distribuía à esquerda e à direita a tal “melhor esquina do Brasil”. Apenas incautos ou triunfalistas acreditaram. Então ficamos assim: quando o leitor se deparar com qualquer noticiário regional que faça referência àquelas declarações de Geraldo Alckmin, tratem de jogá-la na lata do lixo da história.

EXPLICANDO A BOBAGEM

 Primeiro porque, no caso do Grande ABC, não se tratou de declaração original. Foi cópia surrada. Segundo porque o enunciado está longe da realidade. Afinal, como já cansei de mostrar, desde que o trecho sul do Rodoanel chegou ao Grande ABC, sempre tangencialmente, perdemos para a concorrência à Oeste da Região Metropolitana de São Paulo, dotada de trecho muito mais competitivo, porque interativo. De fato, não perdemos para a região à Oeste, comandada por Osasco: estamos sendo impiedosamente goleados. Decidi fazer uma exumação da “melhor esquina do Brasil” em função do Editorial do Diário do Grande ABC. Sou um fuçador da Internet quando acho que a Internet pode ajudar nas pesquisas que realizo. Jamais descarto a Internet porque a Internet tem complementaridades que meu arquivo monstruoso de papel não armazena por questão de racionalidade.  Acho que descobri a origem de “melhor esquina do Brasil”. Salvo traquinagem da Internet, a marca popularizada por Geraldo Alckmin é uma fraude, porque a menção original não é de sua autoria. O Otaboanense, jornal de Taboão da Serra, na Região Metropolitana de São Paulo, publicou na edição de 25 de novembro de 2003 (isso mesmo, há 16 anos, praticamente), que o então governador Geraldo Alckmin entregava o piscinão da Portuguesinha, no Jardim Três Marias, junto à Rodovia Régis Bittencourt. Era o terceiro reservatório de contenção construído na Bacia do Pirajuçara pelo Governo do Estado de São Paulo.

MAIS ALCKMIN 

 Relata o jornal que Alckmin ressaltou que, antes da gestão Covas, o Estado nunca havia construído um piscinão e que “obras como essa então proporcionando desenvolvimento ao Município, aliado a outros fatores como a rodovia BR-116, o Rodoanel, o Hospital de Pirajuçara e, futuramente, a construção da linha 4 do metrô (Vila Sônia-Luz). Afinal, onde aparece “a melhor esquina do Brasil”? Ao final da matéria do Otaboanense, eis que o vereador Olívio Nóbrega diz: “Taboão da Serra está na melhor esquina de São Paulo, nossa cidade vai crescer muito nos próximos anos”. Possivelmente os marqueteiros de Geraldo Alckmin gravaram a frase de efeito, de muito efeito, para uso apropriado, embora inapropriado, porque serviria para tantas situações pouco condizentes com o próprio enunciado. Somente em março de 2011 “a melhor esquina do Brasil” virou um mantra regional, um mantra manquitola, claro. O jornal Repórter Diário abriu manchete a uma entrevista do governador: “ABC ocupará a melhor esquina do Brasil, diz Geraldo Alckmin”. 

VOLTANDO Á REALIDADE

Destacar a paternidade que se descobriu falsa do então governador Geraldo Alckmin não significa que o engodo de melhor esquina do Brasil esteja morto e enterrado. Qualquer autoridade pública que, desatenta, despreparada ou pior que isso, irresponsável, fizer menção a essa comparação esdrúxula, certamente terá ressonância na mídia acrítica.

Esse é um problema crônico da Cidade de João Ramalho e da região dividida: perde-se a noção dos fatos que se confundem com bravatas. Tudo vai depender do prefeito de plantão em cada Município.

Nestes tempos de redes sociais e veículos de comunicação digitais de baixo custo, a propagação de versões edulcoradas da região, em contraste com os fatos, é compulsão indomável. E alimentadora de um ambiente distante dos imperativos de mudanças.  

Esse aspecto é muito mais relevante do que parece. A recuperação de qualquer espaço urbano nos valores de transformação para valer depende do ambiente de crise que vai além da realidade dos números e dos casos. Quanto mais se mistifica a situação social e econômica com propagandismo oficial e ramais de redes sociais manipuladas por essas mesmas fontes, mais prevalece a sensação de que a verdade virou commodities desclassificatórias.

A coletivização da mentira torna qualquer verdade uma ofensa a ser combatida. O jornalismo com laços oficiais e as redes sociais desatentas quando não instrumentalizadas.



IMPRIMIR