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Política

DANIEL LIMA - 23/07/2024

PAGUE – Sabe que fiquei em dúvida sobre o endereço dessa nossa conversa? O número, a rua e o CEP estão todos em ordem, mas a fachada é de uma alfaiataria. Como pode, como pode?

LEVE – Já vi que você é novato no ramo, embora seja emissário de um cliente de muito tempo. A gente já foi lavanderia, já foi casa de massagem, tudo de fachada. Até que encontramos disfarce mais adequado. Alfaiataria não provoca nenhuma maledicência alheia.

PAGUE – Interessante, interessante.

LEVE -- E, além do mais, é a síntese do que somos e do que, juntos, fazemos. Tudo sob medida. O cliente em primeiro lugar. Satisfação garantida ou seu dinheiro de volta?

PAGUE – Isso é mote da Casas Bahia.

LEVE – Você vai entender que com a gente não tem essa de, vamos dizer assim, respeitar a coisa alheia. Nos apropriamos de tudo que a gente quer. Principalmente do futuro das urnas. Esse é o nosso negócio.

PAGUE – É o que esperamos. É verdade que estou começando no ramo, me enviaram aqui porque confiam no meu taco. Disseram para negociar sem complicações, porque o produto não dá zebra. Só trouxe umas anotações para que a gente não cometa nenhuma falha de encaminhamento e resolução.

LEVE – É um prazer receber você aqui. Esse é um assunto que exige presença física mesmo. Reuniões virtuais são frequentemente vasculhadas por piratas da tecnologia. Pode observar que minha sala é toda fechada, lacrada. Literalmente, fechada a sete chaves. Nem janelas tem. E os celulares também não são admitidos aos visitantes. Quem paga, leva, mas a bisbilhotagem não pode ganhar espaço na zona de risco de vazamentos. Temos um longo futuro que não pode ser comprometido com delações premiadas.

PAGUE – Agora entendi por que me tomaram o celular na portaria.

LEVE – Tomaram não é o termo certo, porque nosso encontro é de ganho mútuo. O que fizeram, por ordem minha, foi apenas assegurar que nossa conversa não vai se estender mundo afora.

PAGUE – Já ouvi muito disso por aí, mesmo não necessariamente em casos como esse, de alfaiataria.

LEVE – É assim que funciona, é o padrão, na política depois da Lava Jato.

PAGUE – Mas a Lava Jato já era.

LEVE – Nunca se sabe que o que já era não pode voltar a ser.

PAGUE – De imediato tenho aqui anotado para que a gente firme um contrato de confiança, que devemos ter muito cuidado com a margem de erro. Cá entre nós, me disseram que margem de erro é conversa fiada, porque de fato é margem de manobra. No melhor sentido da expressão. Melhor para a gente, claro.

LEVE – Exatamente isso. Nossa margem de erro vai de acordo com o gosto do cliente. Quanto maior, mais cara, porque dá elasticidade a interpretações e encaminha os resultados para o futuro.

PAGUE – Me explique essa geringonça.

LEVE -- Se o seu candidato não está lá essas coisas, a margem de erro mais larga pode ser um jogada interessante. Ele estará sempre no bloco dianteiro. Agora, se seu candidato estiver bem na percepção de vocês, é melhor a margem de erro mais estreita, porque dará menos folga aos concorrentes.

PAGUE – Está aqui no meu roteiro que precisamos de uma margem de erro que seja margem de manobra. Nosso candidato ainda está meio capenga, tem quase três meses até as eleições e, pelo que sabemos, muitos eleitores, mas muitos mesmo, não sabem em quem vão confiar o que nos interessa.

LEVE – Então vamos trabalhar com quatro pontos percentuais de diferença para cima ou para baixo. Quatro pontos podem ser até 16 pontos quando sobe de um lado e desce de outro. Percebeu que temos um transatlântico a ocupar?

PAGUE – Explique melhor, por favor. Estou começando a ficar confuso.

LEVE – Simples, muito simples: se seu candidato tiver 16% dos votos e o líder tiver 24%, o resultado tanto pode ser 28% a 12% como 20% a 20%, ou seja, de empate técnico. Quatro pra lá, quatro pra cá, entendeu?

PAGUE – Isso é muito bom ou muito ruim, não acha?

LEVE – Você está enganado. A maioria da mídia, que a gente controla, vai destacar a proximidade ao invés da distância. Nesse caso, a disputa estará empatada dentro da margem de erro. Esse é o nosso começo do sucesso rumo às urnas.

PAGUE – Entendi. É mesmo uma grande jogada.

LEVE – Isso é só para começar. Espero que você entenda essa alfaiataria de dados.

PAGUE – E como é possível dar elasticidade ou encurtar a margem de erro?

LEVE – Seguimos rigorosamente a regulamentação para que não haja impedimentos legais. A margem de erro é resultado do número de entrevistas levadas a cabo. Quanto menos entrevistas, mas dentro da metodologia cientifica necessária à consumação do conceito de pesquisa, mais a margem de erro sobe. Entendeu? Quanto mais questionários aplicados, mais a margem de erro cai.

PAGUE – Perfeito. Mas isso não parece algo que teria efeito interessante, mas não completo? Como é possível fazer com que a pesquisa que vai a campo seja cientificamente também esclarecedora para a nossa campanha, que fuja da margem de erro grande demais? Nosso candidato não pode se satisfazer com a repercussão midiática mais que controlada. Precisamos saber como estamos na fita de verdade para dar os próximos passos internos e externos.

LEVE – Simples, muito simples. Para que o trabalho não custe os olhos da cara, a gente pode completar a amostra, ou seja, os questionários aplicados em campo, em número suficiente para derrubar a margem de erro para dois pontos percentuais. Vocês pagam apenas a diferença entre a primeira e a segunda. Esse complemento é informal, ou seja, não é publicado.

PAGUE – Vejo que no tópico seguinte das anotações que recebi existe mesmo a necessidade de contratar essa pesquisa suplementar dentro da pesquisa original. Isso é possível mesmo?

LEVE – Claro: os resultados da pesquisa de dois pontos percentuais de margem de erro servirão para consumo interno. Na próxima, se os resultados forem mesmo bons, podemos registrar a contratação da pesquisa de forma favorável, com margem de erro estreitíssima. Dois pontos percentuais é o limite à credibilidade dos mais atentos.

PAGUE – Como assim: você não disse que tem a mídia no cabresto?

LEVE – Ter a gente tem, mesmo sem contar com a estrutura de uma Datafolha, por exemplo, que alimenta a Velha Imprensa, mas sempre é bom ter cautela. Não se pode exagerar na dose.

PAGUE – Aqui nas anotações diz algo sobre a ordem das perguntas. O que é isso?

LEVE – Isso é um dos pontos centrais de nossa alfaiataria. Sabe aquele punho um pouquinho curto ou comprido que incomoda num paletó de gala? É isso que trata a questão da ordem das perguntas.

PAGUE – Confesso que não entendi.

LEVE – Vai entender. Uma pergunta anterior vai mexer com o subconsciente do entrevistado com repercussão cognitiva na pergunta subsequente. E pode influenciar o resultado individual e conjunto da pesquisa. A gente transforma a pergunta em indução. Ou seja: em resposta às nossas pretensões.

PAGUE – Pode dar um exemplo?

LEVE – Claro, e faço isso com base na experiência vivida, não é fantasia. Imagine um questionário aplicado em Santo André sobre as eleições municipais que tenha uma pergunta sobre quem foi o melhor prefeito da cidade, relacionando vários deles. Colocar o Celso Daniel é indispensável, concorda?

PAGUE – Indescartável? Mais que isso, é uma barbada.

LEVE – Pois bem: se a pergunta antecede o voto estimulado para prefeito em cartelas redondas, que supostamente não favoreceria a nenhum dos concorrentes, quando aparece o nome de um parente de Celso Daniel, como, por exemplo, Bruno Daniel, é natural que ele carregue um montão de votos potenciais. Chamaria isso de voto agregado por indução matreira. Mas isso fica entre nós. É uma jogada e tanto.

PAGUE – Mas isso só vale para casos de parentesco?

LEVE – Vale para uma infinidade de situações. Qualquer coisa que contamine ou favoreça o questionamento imediatamente posterior é o que chamaria de um caminhão de vantagem para o nosso candidato. Entendeu?

PAGUE – Também tem os segredinhos dos enunciados, não esqueça de me explicar. O meu roteirista me alertou sobre isso.

LEVE – Sem dúvida. Temos um arsenal da língua portuguesa própria para proteção ou destruição subliminar de quem pretendemos impactar positivamente ou negativamente. Geralmente o cliente pede o uso pesado contra os adversários. São palavras chaves que também alimentam respostas mais que programadas pelo algoritmo comportamental. Basta acionar a bateria.

PAGUE – Pode dar um exemplo?

LEVE – São tantos, mas tantos, que nem sei se vale a pena dizer. Por exemplo? Para aferir a opinião de brasileiros sobre o Oito de Janeiro tão polêmico, o enunciado que toque, por exemplo, em algo que lembre a condenação daquela ação, algo que lembre atos antidemocráticos, é o suficiente. Lá se foi a autonomia percepcional dos eleitores.

PAGUE – E a distribuição de classes sociais de forma que cada pesquisa represente mesmo a população de uma cidade. Isso é para valer ou não?

LEVE – Sempre tem um jeitinho de burlar a vigilância dos que se acham mais astutos. Um exemplo? Determinada faixa de rendimentos, que caracterize os ricos, os mais escolarizados, por exemplo, pode ser uma jogada e tanto. Nichos de ricos e de escolarizados da periferia e ricos predominantes nos bairros nobres são diferentes. A geografia faz a diferença nos conceitos da classe rica e de escolarizados que vivem  em locais antagônicos. E isso vale também para as demais classes sociais. Tanto quanto questões ligadas à escolaridade, sexo, tudo que a gente utiliza no coquetel de representatividade do eleitorado.

PAGUE – Você é um bom professor. Vou ficar especialista nessa matéria.

LEVE – Aí é que você está enganado. Temos muito mais artimanhas que essas. Mas são segredos que a gente não revela a ninguém. É verdade que tem um ou outro que consegue desvendar à revelia, mas eles não são ouvidos ou quem nos interessa não lhes dá repercussão. A Justiça Eleitoral é muito formal, segue uma cartilha. Pouco entende do riscado.

PAGUE – Isso quer dizer que aquele movimento de congressistas no passado, antes das eleições de 2020, que pretendiam regulamentar as pesquisas, tinha razão de ser?

LEVE – Visto pelo ângulo deles, dos mais espertos, sem dúvida. Mas nosso lobby é forte. Quem é contrário hoje pensa em se beneficiar amanhã. Uma das peças mais importantes disso tudo é a mídia. Sem a repercussão de mídia, as coisas não seriam as mesmas. Temos gente espalhada na mídia para dar a versão esperada. Sabe como é, né: em país dividido, tudo fica mais fácil.

PAGUE – Dizem que a melhor pesquisa mesmo é a pesquisa não publicada.

LEVE – Pode não ser publicada, mas a gente ganha sempre. Há questionários específicos que procuram desvendar muito além das razões dos votos potenciais na praça. São questões estruturalmente ligadas à estratégia do cliente. Contratar pesquisa e se obrigar a publicar a pesquisa tendo como respostas coisas que não interessam ao cliente é um tiro no pé. Chega as bobagens que andam fazendo quando querem expor os dados apesar de nossos conselhos para ficarem na moita.

PAGUE – E ao que parece isso é de certa maneira corriqueiro.

LEVE – Nem sempre. Quando dispomos de tudo arrumadinho para interferir nas percepções do eleitorado, sempre damos um jeito. O nosso álibi e também o álibi dos clientes, e da mídia sob controle, é que ressaltamos o caráter de fotografia das pesquisas, ou seja, do instantâneo. O que não dizemos e não vamos afirmar nunca é que o retrato de cada pesquisa guarda os segredos de um filme. A cada rodada a gente alimenta a fornalha para incrementar a votação em determinado candidato.

PAGUE – De vez em quando dá problema, não é verdade?

LEVE – Nem tudo é perfeito e a gente e o cliente, além da mídia amiga, não temos muitas respostas, a não ser mentir para ver se cola.

PAGUE – O caso da diferença de 14 pontos percentuais que a Folha de S. Paulo propagou na véspera do primeiro turno presidencial em 2022 é emblemático?

LEVE – Foi um furo nágua porque a diferença nas urnas não chegou a quatro pontos percentuais. Eles tiveram de dar a desculpa de que foi a movimentação de última hora, imprevista, mas não é bem isso. A ordem geral era manter os candidatos bem distantes entre si para garantir a vitória no primeiro turno na base do voto útil. Mesmo com a Simone Tebet e o Ciro Gomes caindo, não foi possível chegar aonde pretendiam.

PAGUE – Pelo que entendi, a pesquisa final, antes da disputa, é que garante a imagem de acerto no resultado e que, portanto, dá credibilidade aos institutos, ou devo chamar de alfaiataria?

LEVE – De alfaiataria é melhor, porque costuramos mesmo os resultados com o ecossistema do poder. A cada rodada de pesquisa massificada a gente vai influenciando o eleitorado. Principalmente       o eleitorado que não seja tão pronunciadamente dividido, como lulistas e bolsonaristas. Quando chega na reta final a gente dá uma ajustada para tudo parecer científico e dentro das regras.  De vez em quando a máscara cai. Ainda mais agora que a turma dos evangélicos é subestimada na representação social. Mas não quero falar sobre isso agora.

PAGUE – Nas disputas municipais, onde há maior folga entre os concorrentes favoritos, a margem de manobra, ou de erro, é mesmo decisiva?

LEVE – Como já disse, ou deixei implícito, quanto mais eleitores indecisos ou neutros, melhor para alcançar os resultados desejados. Quando há margem elástica de 30% ou mais de eleitores que não têm convicção sobre o voto que vai definir na urna, ou nas proximidades do dia da eleição, mais as pesquisas fazem a diferença. Temos de chocalhar a roseira, tirar esse pessoal de cima do muro.

PAGUE – Os jornais que contratam ou dão cobertura aos candidatos que apoiam entre os lençóis da malandragem,  participam dessas negociações ou vou sair daqui com a tranquilidade de que não haveria vazamento?

LEVE – As relações com os jornais e outras mídias não fazem parte de nosso negócio na maioria dos casos. São nossos clientes que se resolvem com os empresários. Eles é que tratam de dar o tom de interpretação dos dados que recebem. Damos tudo mastigadinho. E mesmo assim de vez em quando eles fazem trapalhadas.

PAGUE – Que tipo de trapalhada?

LEVE – Conseguem entregar a rapadura na margem de erro, ou margem de manobra. Vão além da lógica de que a margem foi feita para favorecer o cliente, dando-se destaque ao resultado numérico propriamente dito ou minimizando a inferioridade com a elasticidade permitida pela margem de erro. Nesses casos, não podemos fazer nada.

PAGUE – Há pesquisas encomendadas pelos institutos de pesquisa que detectam como os eleitores veem os institutos de pesquisa?

LEVE – De vez em quando somos contratados para aferir exatamente o que você mencionou. Não sei se é por inibição de estar diante de um pesquisador, o fato é que há indicativos de certa moderação sobre a confiabilidade das pesquisas. Acho que os números não são um primor, mas como ninguém gosta de falar mal do filho para terceiros, os resultados são sempre positivos. Existe, cá entre nós, uma ignorância muito grande sobre a importância e a precisão das pesquisas eleitorais. E essa história de dizer que há quem ama e quem odeia por conta dos resultados favoráveis ou contrários  não pode ser subestimada. Quando os dados são bons para os apoiadores de determinado candidato, essa turma não admite colocar em dúvida a legitimidade das pesquisas. Mas quando o resultado está bem aquém do esperado, e um Deus no acuda.

PAGUE – Daí?

LEVE – Daí que o próprio consumidor passa por otário, faz das tripas coração para acessar o dispositivo de credibilidade, mesmo que desconfie muito. Essa volatilidade é, contraditoriamente, o que faz das pesquisas eleitorais um instrumento de confiança, por mais desconfiança e provas que sejam apontadas.

PAGUE – Então o que temos é um produto indestrutível?

LEVE – Mais que indestrutível, também respeitado. Tanto é verdade que na etapa final de disputas eleitorais há de maneira geral grande preocupação com os dados publicados. Muita gente sabe que podem ser números mentirosos, manipulados, mas não existe saída senão a preocupação com o grau de contaminação do eleitorado. Em disputas encardidas, os pontos percentuais de influência das pesquisas podem definir vencedor e derrotado.



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