Vamos falar da sucessão eleitoral em Santo André e em São Bernardo nesta temporada? Vamos tirar uma coisa e outra coisa da panela de incoerências e fanatismos, quando não da ignorância e da má-fé? O resumo da ópera que vou explicar em seguida é o seguinte: Paulinho Serra fez da paz o caos, o pandemonio. Orlando Morando fez do encalacramento saída estratégica, um contragolpe portentoso. Os resultados finais a Deus pertencem, mas os homens têm livre arbítrio para colaborar. Ou desandar de vez.
Há quem veja divisionismo onde de fato e para valer existe colaboração. Uma colaboração publicamente comedida, até porque necessária. É o caso de São Bernardo. Há quem veja coletivismo onde impera o divisionismo fraticida. É o caso de Santo André.
Existem duas maneiras de compreender o que separa Santo André e São Bernardo na disputa eleitoral desta temporada. A primeira é embaralhar as nuances, comparando-as diretamente. A segunda é separar as duas porções e, em seguida, dar acabamento geral, aproximando-as. Vou pelo caminho do didatismo, cuidando de cada território individualmente, levando-os ao encontro mútuo apenas mais adiante.
DA BARBADA AO CAOS
Em Santo André, a reeleição do grupo de Paulinho Serra era uma barbada. Os adversários praticamente não existiam. O primeiro turno era um marco temporal único. Mas a botafogada adveio com a ruptura do contrato de confiança entre o prefeito reeleito Paulinho Serra e o vice-prefeito também reeleito, mas habilitado a ser prefeito, Luiz Zacarias.
A arrogância tomou conta do grupo até então supostamente monolítico de Paulinho Serra. Esnobou-se a lógica de que em política tudo pode acontecer. Descartou-se a revisão de valores e humores. Construiu-se o Grupo dos Nove Privilegiados que, de fato, era um arcabouço de falsa exuberância de bola no barbante eleitoral. Dos nove, apenas dois eram de fato os donos da bola. Mais precisamente, um deles, o jovem Gilvan Junior, secretário de Saúde.
O rompimento do vice-prefeito Luiz Zacarias foi imediato. Vice-prefeito é cargo de expectativa de ser prefeito. Até que o prefeito de plantão decida com segurança. O passado virou trapo em Santo André. Elogios públicos do prefeito Paulinho Serra ao vice-prefeito ao longo da trajetória de dois mandatos (há provas materiais na Internet) foram substituídos por críticas, quando não desrespeito público em forma de manchetes de jornal, entre outras maquinarias. Luiz Zacarias virou teco-teco qualquer, aeroplano de pequeno porte, na manchete do Diário do Grande ABC.
DIVINDO O BOLO
O rompimento entre prefeito e vice-prefeito em Santo André não tem volta. O jogo jogado para ser encerrado no primeiro turno sem qualquer risco agora encaminha-se ao segundo turno. Até o PT que parecia morto parece acordar.
Quando os adversários começam a fazer contas e acreditam que o indicado do Paço Municipal não somará 50% dos votos válidos no primeiro turno, todos se assanham.
Aliados do próprio prefeito lançaram candidaturas, casos dos vereadores Coronel Sardano e do ex-petista Eduardo Leite. Quanto mais concorrentes, mais segundo turno aparece no horizonte. E segundo turno, todos sabem, pode ser outra partida. Geralmente é.
Então ficamos assim quanto a Santo André: o time do prefeito estava goleando um adversário entregue às baratas, esnobou, exagerou na dose e agora vê atônito um segundo turno chegando para valer.
GABINETE DE CRISE
Vai precisar gastar muito dinheiro para tentar conter o desastre. E, como estamos vendo, o time de Paulinho Serra não sabe jogar sob pressão. A cada movimento no enxadrismo eleitoral, mais se perde.
Agora mesmo recorreu à rede social para demonizar o concorrente Luiz Zacarias, transformando-o em assediador de mulheres e invasor de espaço público de eventos políticos com potencial aliado, no caso o governador do Estado Tarcísio de Freitas.
A campanha de Paulinho Serra desandou. Um gabinete de crise é descartado, quando deveria ser prioridade. Só não pode ser integrado por fanáticos e adoradores do imperador de plantão.
MUDANDO O JOGO
Em São Bernardo a situação era oposta. E muito ruinosa para o prefeito Orlando Morando. Apesar de muito bem avaliado pela população, mas também sem poder concorrer, Orlando Morando se viu órfão de um tratado anterior com o vice-prefeito Marcelo Oliveira, que, eleito deputado federal, foi cassado pela Justiça Eleitoral.
Como teve de renunciar ao cargo de vice-prefeito pra concorrer ao Legislativo, Marcelo Lima ficou na mão. Foi cassado porque trocou de partido sem os cuidados exigidos e infringiu a legislação. Uma legislação draconiana. Cabe-lhe sim o papel de vítima de um disparate.
Marcelo Lima virou um parceiro de jornada sujeito a chuvas e trovoados do eleitorado. Os adversários não vão perdoar a cassação. Mais que isso: vão lançar uma ofensiva depreciativa. Ser cassado e caçado eleitoralmente é sinônimo de irregularidade. A cultura eleitoral é implacável. Vítima vira vilão.
Conclusão? Numa jogada de extraordinária vivacidade, Orlando Morando manteve os laços com o ex-vice-prefeito e ex-deputado e lançou um dispositivo de sensibilização chamado Flávia Morando. O nome Morando, preferência majoritária do eleitorado de São Bernardo, vai às urnas.
CARROÇA E TRANSATLÃNTICO
Essa ida às urnas não é uma viagem de carroça tática. É um passeio num transatlântico estratégico. Morando de saias vai levar a aprovação do Morando de calças aos eleitores para reforçar subliminarmente o campo da direita e do centro.
Aonde Marcelo Lima não tem muita aderência popular, Flávia Morando terá. Essa complementariedade vai garantir a Marcelo Lima ou a Flávia Morando nas urnas do segundo turno. Tudo isso é teoria, claro, mas precisa mesmo dessa especulação para ser compreendida. Contrapontos a isso precisam de sustentação teórica plausível.
O primeiro turno vai ser de teste para entender até que ponto a cassação de Marcelo Lima interferirá no potencial de votos do candidato Marcelo Lima. Se passar pelo crivo popular, contando para tanto inclusive ou não com os votos paralelos de Flavia Morando, estaria imunizado para o segundo turno. Se contar com votação inferior a de Flavia Morando, Marcelo Lima terá motivos de sobra para apoiar a sobrinha do prefeito Orlando Morando no segundo turno. Esse é o trato feito. E bem feito.
MEDIDAS PROVIDENCIAIS
A manobra incisiva de Orlando Morando indicar Flavia Morando à sucessão seguiu trajeto de conciliação com Marcelo Lima. Seria muita estupidez duas coisas diferentes disso.
A primeira, uma relação de conflito com o vice-prefeito eleito em 2016 e natural indicado à sucessão. Segundo, desprezar o potencial negativo da cassação e, com isso, correr numa raia eleitoral de primeiro turno contra dois adversários, o deputado federal Alex Manente e o deputado estadual petista Luiz Fernando Teixeira. Marcelo Lima poderia sobrar.
Flávia Morando protege boa parte das possibilidades teóricas de Marcelo Lima ir ao segundo turno com força eleitoral. Diretamente ou indiretamente.
Os efeitos colaterais da escolha de Flávia Morando vão muito além da ramificação de possibilidades palpáveis descritas acima. Atingem também diretamente o deputado estadual Alex Manente. De fato, atinge profundamente. A estratégia de Manente trabalhar candidatura como sucessor natural do espólio eleitoral de Orlando Morando foi para as calendas.
MORANDO É MORANDO
Com Flavia Morando na disputa, nenhum eleitor de São Bernardo vai confundir as bolas. Sem um nome que abarcasse o prestígio direto do prefeito, Alex Manente estaria na cara do gol do segundo turno e provavelmente da vitória eleitoral diante do petista Luiz Fernando Teixeira.
Agora, como se observa (e escrevi sobre isso na edição de segunda-feira) o que temos são quatro candidaturas em busca de duas vagas. Duas duplas dessas candidaturas são aliadas informais e devem resultar num dos finalistas. Flavia Morando ou Marcelo Lima. A outra sairia da dupla Alex Manente e Luiz Fernando Teixeira.
Não seria a primeira vez que, derrotado, Manente se lançaria nos braços de eventual mais provável prefeito no segundo turno. Foi assim antes, com o PT ou como puxadinho dos conservadores.
SEM SUCESSOR
Para completar, há outros dois pontos que devem ser colocados na balança do reconhecimento de que Orlando Morando foi sábio na alquimia eleitoral.
Primeiro, não apontou nenhum sucessor até que se aproximasse o fechamento da janela eleitoral. Com isso, não desmoralizou a candidatura do vice-prefeito de duas vitórias eleitorais. Marcelo Lima foi preservado publicamente e valorizado internamente.
Segundo, e prestem atenção a isso: nenhum prefeito de dois mandatos em São Bernardo fez o sucessor neste século. Todos perderam ao apontarem preferidos. Orlando Morando perdeu para Luiz Marinho ao ser indicado por William Dib. Tarcísio Secoli indicado por Luiz Marinho perdeu para Orlando Morando. São situações específicas que não desclassificam os resultados nem as projeções.
Tudo indicava até outro dia, com três candidatos apenas, que a história se repetiria. Agora, com quatro, é melhor começar a entender que tudo pode ser diferente. Talvez não seja apenas para Alex Manente que, de favorito potencial, virou terceira ou quarta via. E isso fere em cheio os fanáticos de plantão.
Tudo isso é especulação, como sempre alerto, mas há fundamentação no passado e nas circunstâncias do presente que recomendam ponderação.