No livro “Complexo de Gata Borralheira” faço o que seguramente é a interpretação mais pedagógica do sentimento de inferioridade dos municípios da região diante da vizinha e poderosa Capital do Estado.
Costumo dizer que qualquer criancinha com acesso ao livro, ou qualquer migrante ou imigrante, quando não turista, só precisará de uma hora e meia para, leitura consumada, compreender as idiossincrasias da região.
Quem vem ou está na região e não se dá conta de que para construir qualquer juízo de valor sobre a regionalidade local é prioritário fugir dos trombeteiros triunfalistas acabará se dando muito mal.
Pena que o livro físico já não esteja mais disponível, exceto em sebos espalhados na Internet. Quem não encontrar pode acessar a integra neste site. Complexo de Gata Borralheira é muito mais que um livro. É a essência deste jornalista no sentido de que jamais se deixou pautar pelo politicamente correto. O outro lado da moeda imprestável é o desastradamente omisso.
AÇÃO DESARTICULADORA
Mais que entender as rivalidades internas da região, provavelmente o leitor mais atento poderá aprofundar especulativamente o que procurei sintetizar numa apresentação de fatos históricos. Tudo isso centralizado em diálogos entre os sete municípios da região, o Estado de São Paulo, a cidade de São Paulo, o Governo Federal e também, por fim, o mote motivador daquela obra, no caso a personagem da Violência, que naquele 2002 levou embora o prefeito Celso Daniel.
Escrevi “Complexo de Gata Borralheira” em 10 dias. Comecei durante a tarde de uma sexta-feira, coincidentemente poucas horas antes do sequestro de Celso Daniel, e terminei ainda sob estresse emocional do assassinato.
O lançamento se deu num Teatro Municipal de Santo André lotadíssimo e diante de atores e atrizes que proporcionaram leitura dramática inesquecível. Me senti um Dias Gomes. Os personagens foram ovacionados pela plateia. Uma noite inesquecível.
VERDADE SUBMERSA
Faço essa volta ao passado apenas com o sentido de o leitor entender que a temática central da regionalidade sempre frágil do ABC Paulista tem raízes profundas.
A verdade que poucos admitem publicamente é que cometemos um dos mais agudos equívocos no processo de consolidação demográfica territorial da região, identificada na primeira praga desta série.
Claro que me refiro à emancipação político-administrativa de uma megacidade que se transformou em sete partes desiguais, autônomas na arrogância provinciana e multiplicadora de improdutividades.
Deixamos, portanto, de ser um endereço com amplo potencial de incorporar medidas gerenciais públicas mais assertivas e sustentáveis, entre outras iniciativas, para flexibilizar-se em sete ângulos diferentes, quando não contraproducentes.
A integridade territorial e estratégica cedeu espaço à dispersão e a táticas conflitivas, quando não destrutivas.
IDENTIDADE EMPRESTADA
Por si só as decisões separatistas consumadas a partir de meados do século passado já seriam uma complicação e tanto num mundo que já se conectara mais e mais, com a criação de instituições internacionais pós-guerra.
No caso do então chamado Grande ABC, que virou ABC Paulista (ou ABC Paulista que virou Grande ABC?) os estragos foram maiores porque ganharam impulso e tração. Ao municipalismo fragmentado, resultado da violação do municipalismo unificado, sobreveio ou se acavalou ou se acentuou o que chamaria de uma fuga em busca de identidade psicossocial subalterna.
Ou seja: todos os municípios, em batalhas de identidade própria interna, de interconexões solapadas, de aproximações revogadas, voltaram-se à compensação externa à autoestima municipalista insatisfeita.
A Capital do Estado foi e segue sendo válvula de escape à inferioridade sentimental de uma área contigua, a região, fortemente marcada pela imigração do começo do século passado e pela migração com a chegada da indústria automotiva.
CONVERSA MOLE
Essa geleia demográfica desandou de vez ante a pujança da Capital, centro de gravidade da Região Metropolitana de São Paulo, área hoje com 22 milhões de habitantes espalhados por 39 municípios. O dobro de todo o Rio Grande do Sul. Metade vive na Capital dominadora de todos os espaços humanísticos.
Por conta disso, apontar a geografia e seus reflexos geoeconômicos, geoculturais, geoinstituicionais e tudo o mais como a segunda praga que ajuda a explicar a derrocada do ABC Paulista é um ponto vital em qualquer estudo.
Cair na conversa mole de que a região independe da Capital, que tem identidade própria, ou que somos isso e aquilo, é meter-se numa emboscada. Quanto mais um interlocutor negar as evidências que o tempo esquadrinhou, mais se deve desconfiar de insanidade em forma de negação.
TROCANDO AS BOLAS
Com quase três milhões de habitantes, o ABC Paulista não tem a importância política da maioria das capitais espalhadas pelo País. Somos um puxadinho da cidade de São Paulo. Um puxadinho que cada vez mais só chama a atenção quando desgraças do cotidiano saltam à curiosidade midiática.
Faça uma pesquisa memorial, vai até a Internet e digite algumas palavras que mencionem a região em forma de ABC Paulista e situações negativas, quando não constrangedoras. Faça o mesmo relacionado à Economia. Você vai se assustar com os resultados.
Nos tempos em que a indústria automotiva e o movimento sindical mobilizavam um cenário de perspectivas de mudanças nacionais, a região chegou a ter relevância no noticiário da chamada Grande Imprensa.
Principalmente por conta das greves dos metalúrgicos desbravadas num período de fechamento político, com o Regime Militar ainda vigente. Chegou-se a confundir as bolas entre relações trabalhistas e macroambiente político.
SEPARANDO AS COISAS
Nunca houve tamanho entranhamento. Criou-se uma aura de rebeldia de trabalhismo ante o militarismo, quando de fato a disputa envolvia trabalhistas e corporações empresariais. Forças estranhas procuraram capitalizar as disputas entre capital e trabalho.
O tempo tratou de separar uma coisa da outra até porque uma coisa não era outra coisa. As conexões eram tênues e jamais formaram elos que se retroalimentaram sistemicamente.
A disputa era entre capital e trabalho, essencialmente isso. Os condimentos políticos foram alimentados marginalmente.
Um resultado a que poucos se referem é que a influência dos embates entre principalmente metalúrgicos e montadoras e autopeças se espalhou nos municípios locais como rastilho de pólvora de divisão socioeconômica no interior da desintegração regional já postal. Capital e trabalho hostilizados despertaram na sociedade separações semelhantes entre empreendedores e trabalhadores fabris.
E SE FOSSE DIFERENTE?
Não custa lembrar e ressaltar sempre que a procura por uma identidade própria em linha de montagem vagarosa se esvaiu de vez com o separatismo dos municípios. A moldagem da peça de unicidade territorial e administrativa passava pela absorção de sentimento regional no período de ocupação demográfica intensa na esteira do vislumbre da riqueza proporcionada pela industrialização.
A subalternidade à Capital ganhou, portanto, impulso estrondoso com o divisionismo territorial.
O que se pergunta -- e a pergunta vale um milhão de dólares -- é qual seria a situação econômica, social e cultural da região de sete municípios se a região de sete municípios continuasse a ser uma cidade-região de um único Município?
Se essa pergunta valeria um milhão de dólares, quanto valeria então uma outra indagação, que pareceria igual, mas de fato é semelhante: qual seria o grau de pertencimento social, econômico e cultural do ABC Paulista se o ABC paulista ao invés de estar geograficamente onde está estivesse no Interior do Estado, longe, portanto, dos efeitos deletérios da periferia da Capital mais frondosa do País?
SITUAÇÃO IRREVERSÍVEL
Insistir nesses dois questionamentos não é ramal denunciador do gataborralheirismo tão marcante do ABC Paulista, como se confirmasse uma enfermidade sociológica tanto condenada.
Trata-se exclusivamente de tentar encontrar alguma alternativa que, respeitando-se a realidade dos fatos históricos, poderia indicar uma saída ou meia saída ou um caminho qualquer para mitigar os efeitos da vizinhança poderosa e incômoda.
Quem chegar à conclusão de que o ABC Paulista vive situação irreversível como quintal da Capital, pelos efeitos vinculantes impossíveis de mudar a roda dos acontecimentos e dos desdobramentos, então não restaria alternativa senão entregar os pontos.
Diante da impossibilidade de remover do mapa da Grande São Paulo o território à Sudeste da Capital, transportando-o a uma terra prometida distante o suficiente para amenizar os danos das proximidades da Capital, talvez o melhor mesmo fosse mergulhar no tempo e recorrer aos pressupostos do então prefeito Celso Daniel.
CELSO DANIEL
E o que disse um dia Celso Daniel a este jornalista, numa entrevista longa, dentro de um ônibus de conselheiros e torcedores do Santo André rumo a São Carlos, Interior do Estado?
Que era preciso, no campo econômico, aproveitar-se da proximidade com a Capital com iniciativas que deslocassem para cá o que supostamente se exaurisse lá, sobretudo no setor de serviços. Ou seja: Santo André (e as demais cidades da região) poderia transformar o obstáculo geoeconômico em bônus desenvolvimentista.
Não foi por outra razão que Celso Daniel lançou o projeto Eixo Tamanduatehy e também procurou harmonizar as relações internas com a uniformização do ISS (Imposto Sobre Serviços) nos sete municípios, ganhando-se musculatura de marketing para atrair empresas que procurariam alternativas à redução dos custos e ao que especialistas chamam de deseconomia em escala da Capital.
A história é conhecida: Celso Daniel foi traído pelos demais prefeitos, especialmente Luiz Tortorello, de São Caetano, e o plano foi por água abaixo. O que temos na região de terciário é uma rede fastfoodiana de baixo valor agregado, com salários em média 30% abaixo da média industrial regional.
PIOR RESULTADO
Santo André provavelmente é o exemplo mais grave de dupla viuvez, em forma de desindustrialização acentuada (maior que a de São Caetano ao longo de 40 anos) e de ocupação de serviços de baixa remuneração e inserção econômica.
Tanto que despencou no ranking estadual de PIB por habitante. Nenhum endereço fica isento de ter força de trabalho na indústria de transformação reduzida a 12% do efetivo de empregados com carteira assinada. Trata-se da menor incidência na região e uma das mais comprometidas no Estado de São Paulo.
Em dezembro do ano passado fiz uma comparação envolvendo o mercado imobiliário da região e o mercado imobiliário da Capital. Todo o mundo sabe ou deveria saber que o preço da terra urbana tem tudo a ver com o estágio econômico dos municípios. Quanto mais disputado para moradia, negócios e investimentos, maior a competitividade.
VALOR DA TERRA
Os indicadores que envolvem endereços essencialmente turísticos não devem ser levados em consideração quando não se conciliarem com algo mais sustentável. É o caso da engrenagem econômica que move a métrica mais respeitada, embora nem por isso ajustadíssima, do PIB (Produto Interno Bruto). Transformar turismo em força motriz de Desenvolvimento Econômico é para endereços privilegiadíssimos pela natureza ou pelo marketing. Ou por ambos.
Revelei que o PIB Imobiliário em forma de ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis) desnudava o gataborralheirismo econômico da região e os estragos que vizinhança causava a todos. Escrevi que, embora conte com um quarto do PIB Tradicional em relação ao Município de São Paulo, o PIB Imobiliário na região é um fracasso retumbante.
FAZENDO AS CONTAS
Fiz as contas levando-se em conta os dados das três principais praças da região (Santo André, São Bernardo e São Caetano), e constatei que o PIB Imobiliário representa apenas 7,00% da Capital. Também lembrei que caso se acrescentassem os dados de Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra a participação relativa mal se moveria. Esses municípios da região são inexpressivos na atividade imobiliária em forma de negócios.
Fiz uso de dados da Secretaria do Tesouro Nacional relativos à temporada de 2021, que davam a exata dimensão do mercado imobiliário de São Paulo em relação ao que o Grande ABC representa.
A movimentação dos negócios imobiliários em São Paulo gerou R$ 3.685.578 bilhões de ITBI em 2021. No mesmo ano, os três principais municípios do Grande ABC no setor geraram R$ 259.349.633 milhões. Ou seja: 7,00% de participação relativa.
Mostrei também que, em valores absolutos, São Bernardo era em 2021 o melhor PIB Imobiliário do Grande ABC: registrou R$ 122.384.334 milhões de arrecadação. Santo André vinha em seguida com R$ 93.521.923 milhões. São Caetano chegou em terceiro com a arrecadação de R$ 43.443.378 milhões.
A máxima do mundo político que diz que quem parte e reparte e não fica com a maior parte é estúpido ou não entende da arte se encaixa perfeitamente no separatismo do território regional no século passado. Os prejuízos não têm fim.