Imagine você na função de promotor de Justiça de São Caetano. Membro, portanto, do Ministério Público. Imaginou? Pois então tenho uma tarefa para você. Que decisão você tomaria se lhe chegasse às mãos o caso do inventário de Samuel Klein, o Rei do Varejo da Casas Bahia, e que envolve os irmão Michael Klein e Saul Klein?
O caso é complicado, como temos abordado. Resumidamente, Saul Klein, o filho mais novo de Samuel Klein, constituiu advogados (o escritório requisitadíssimo do criminalista Alberto Toron) para acusar o irmão Michael Klein, primogênito de Samuel Klein, de ter fraudado assinaturas do patriarca, manobra com a qual alterou a ordem do jogo de ações da companhia que começou com uma lojinha em São Caetano até se tornar a maior do varejo nacional – esqueça estes dias de turbulência da Casas Bahia.
O inquérito policial foi instaurado na Capital, mas os advogados (do igualmente requisitadíssimo escritório do criminalista Daniel Bialski) de Michael Klein, o irmão acusado, conseguiram deslocamento a São Caetano. Levar para São Caetano o inquérito policial significaria algo como um jogo de mata-mata único, uma final de Libertadores da América, por exemplo, no campo que um dos finalistas escolhesse, com torcida única e arbitragem sob controle. Essa seria a suposta razão de uma troca de endereço de apuração criminal.
CAMPO DE VANTAGEM
Afinal, Michael Klein tem mais prestígio que Saul Klein em São Caetano. Michael não teria mácula alguma como empresário que viu o pai Samuel Klein construir uma gigantesca rede de lojas a partir de São Caetano.
Saul Klein teve o nome manchado porque se meteu em política e logo estourou a bomba de supostos crimes sexuais, até hoje longe de qualquer prova material. São Caetano até esqueceu que o time de futebol que chegou a ser chamado de “Namoradinha do Brasil”, o Azulão, só existiu como ativo de uma São Caetano cheia de orgulho porque Saul Klein sempre esteve à frente do projeto. Foram R$ 500 milhões de doações em quase duas décadas.
PRIMEIROS ARGUMENTOS
Diante da denúncia de Saul Klein de que o irmão Michael Klein deu um drible da vaca legal para ficar com o maior naco de ações da Casas Bahia, o que esperar quando chegasse uma das horas da verdade no inquérito policial em São Caetano? Veja uma parte da resposta dos advogados de Michael Klein:
“Inobstante a série de equívocos e inverdades narradas na notícia de crime que colocam em xeque o bom nome do peticionário e afrontam contra a memória do patriarca da família Klein, fato é que as investigações carecem de justa causa e não devem prosseguir, tendo em vista a incontestável ocorrência da prescrição de pretensão pretendida”.
Você não está enganado. A defesa do acusado Michael Klein se manifestou ao delegado de Polícia de São Caetano de maneira inesperadamente atordoante: deixou de lado a defesa propriamente dita e enveredou pelo caminho da prescrição. Leia mais:
“Talvez por verificarem o falecimento do direito de punir em relação aos fantasiosos crimes de falsificação documentais (alterações contratuais e testamento público) tentaram dar nova roupagem típica aos fatos, vestindo-os como se estelionato fossem. Porém, estelionatos estes que sequer foram descritos na Notícia de Crime, que nem mesmo aponta quais atos se teriam sido praticados pelo Peticionário. E isso tudo é parte integrante do enredo criado pelo denunciante que tem como finalidade única esconder o óbvio: a latente e inescondível ocorrência da prescrição da pretensa punitiva” – escreveram os advogados de Michael Klein.
MAIS ARGUMENTOS
Para você decidir como se promotor de Justiça fosse, é preciso ter mais informações dos defensores de Michael Klein.
“A forçosa narrativa do denunciante é a de que a falsificação dos documentos serviria para a obtenção de vantagem indevida por parte do Suplicante e de seus filhos, em prejuízo do denunciante. Ou seja, na tentativa de criar um cenário irreal a Notícia de Crime se inclina ao argumento de que os delitos de falso na verdade seriam crimes meio para o cometimento do crime fim, o estelionato. Nada mais irreal”.
Para completar, leia o argumento final da defesa de Michael Klein encaminhado ao delegado de Polícia:
“Excelência, com a devida vênia, ainda que seja desejo do Peticionário comprovar sua inocência e que tudo não passa de mais uma falácia criada por seu irmão (...) por dever de ofício, estes advogados não podem fechar os olhos para a causa extinta de punibilidade existente no caso, decorrente da prescrição da pretensão punitiva, fulminando a continuidade do presente inquérito policial”.
MAIS ARGUMENTOS
Na sequência, os advogados de Michael Klein discorrem sobre as especificidades dos crimes de falsificação de documento particular e de falsificação de documento público, respectivamente com penas máximas de cinco anos e de seis anos:
“Outrossim, o Peticionário já conta com mais de 70 anos, e, portanto, os prazos de prescrição são reduzidos pela metade (...). Dessa forma, a prescrição da pretensão punitiva no presente caso deverá ser observada dentro do intervalo temporal de seis anos. Assim, o referido lapso temporal se mostra ultrapassado, não havendo como se cogitar o seguimento das investigações.”.
A manifestação da defesa de Michael Klein ao delegado de polícia reúne mais informações, mas o núcleo é a extinção do inquérito por conta de pretendida prescrição.
CONTRA-ATAQUE
O que se coloca como desafio ao leitor é até que ponto, como imaginário promotor de Justiça, atenderia à demanda dos defensores de Michael Klein, considerando-a plausível, ou, em oposição, reagiria incrédulo ao aparato argumentativo todo estruturado na prescrição.
Afinal de contas, não pareceria uma confissão de culpa de Michael Klein a retaguarda de suposta proteção prescricional ao invés de oferecer ao delegado de Polícia provas materiais de que a demanda criminal não se sustentaria?
O Ministério Público foi acionado também pelos defensores de Saul Klein, o irmão denunciante. Os contra-argumentos foram expostos.
“Para não estender ainda mais uma discussão infrutífera, que apenas se presta a atrasar o andamento da investigação, diga-se de forma direta e clara: como se lê na Portaria do presente Inquérito Policial, aqui se investiga a possível ocorrência do crime de estelionato e não de falsidades, como tenta confundir o investigado, estas que foram apenas um meio – e a pretensão punitiva por esse delito não está prescrita” – afirmaram os advogados do escritório de Alberto Toron.
CONTRA-ATAQUE
O lance seguinte da reação dos defensores de Saul Klein, o irmão denunciante, pareceria sólido ao leitor supostamente travestido de poderes do Ministério Público? Leiam:
“O primeiro erro cometido pelo investigado em seu pedido é facilmente esclarecido: ele parte da premissa de que o crime de estelionato ter-se-ia consumado quando efetivados os registrados das alterações contratuais e do testamento. Esse, porém, não é o momento consumado do crime de estelionato, cuja conduta central – o verbo nuclear do tipo do artigo 171 do CP – é obter para si ou para outrem, vantagem ilícita. Tendo em vista que apenas se considera consumado o crime quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal, o estelionato apenas se consuma depois da obtenção da vantagem ilícita.”.
O leitor não pode esquecer jamais que está convidado ao papel de promotor de Justiça. Então, vamos lá com mais uma parte da exposição dos defensores de Saul Klein:
“Em termos diretos e claros, as alterações contratuais potencialmente fraudulentas referidas no pedido de instauração aumentaram sensivelmente a participação societária de Michael Klein nas Casas Bahia. Em razão desse aumento (ao que tudo indica fruto de fraude), o investigado vem, ano após ano, obtendo vantagens possivelmente indevidas (e milionárias)”.
CONTRA-ATAQUE
Mais adiante, a defesa de Saul Klein trata especificamente da pretendida prescrição alegada pelos defensores de Michael Klein:
“Diversamente do que sustenta a petição (...), estes crimes não prescreveram. Não se trata, à evidência, de crime que ter-se-ia consumado quando efetivados os registros das alterações contratuais e do testamento, tampouco de crime instantâneo com efeitos permanentes. (...). O investigado recebe, no mínimo ano a ano, benefício possivelmente indevido, sendo a ofensa ao bem jurídico reiterada a cada novo recebimento. Daí, a falácia da tese de prescrição. Não bastasse isso, é preciso ter claro que as falsidades nos contratos sociais e demais documentos referidos na inicial propiciam a obtenção de inúmeras outras vantagens indevidas, autônomas e independentes, que configuram, em tese, outros crimes de estelionato.
Outro trecho da defesa de Saul Klein no documento enviado ao Ministério Público de São Caetano dá conta de que as possíveis fraudes também beneficiariam, em cifra bilionária, os filhos de Michael Klein, que “definitivamente não têm mais que 70 anos. E completa: “Tudo isso demonstra que a manifestação do investigado Michael Klein sobre a suposta ocorrência de prescrição da pretensão punitiva é uma tentativa precipitada – e desesperada – de pôr fim às investigações”.
DECISÃO TOMADA
Esse é o resumo da ópera do novo capítulo do caso Klein versus Klein. Se o leitor, instado à função deliberativa de promotor de Justiça, optou pela rejeição da tentativa de encerramento do inquérito policial, acertou em cheio. O MP decidiu que os argumentos da defesa de Michael Klein não têm robustez jurídica. O jogo vai continuar. É um mata-mata de dois jogos. E, por enquanto, até prova em contrário, o filho mais novo de Samuel Klein está em vantagem. Sem precisar de arbitragem estrangeira. O que é arbitragem estrangeira? Talvez descubra se for necessário.