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Regionalidade

DANIEL LIMA - 27/09/2023

Se fosse escrever um novo livro físico, de papel, porque digital escrevo a cada dia, um livro físico que se somaria aos quatro já impressos, possivelmente converteria em realidade a inspiração desses dias, depois de ler e de assistir o que era possível sobre o documentário “Zonas Azuis”, que trata de localidades especiais no mapa-múndi. Nesses locais, a longevidade física (e a qualidade de vida) é a mais elevada do planeta.  

Não há como não pensar em algo análogo do ponto de vista institucional da região. Chamaria de Arquipélago Cinza o que temos de arcabouço social no sentido mais abrangente possível.  

O que apresento neste texto é diferente do que imaginei inicialmente. Vou apenas dar algumas pinceladas conceituais sem me ater a detalhismos que colocam a região como pária de si mesma, ou seja, um organismo supostamente vivo que se rejeita e se anula, quando não se compromete e se avilta como espaço com potencial humano extraordinário. Três milhões de pessoas em 800 quilômetros quadrados --- eis uma efervescência de virtudes desperdiçadas.  

JOGANDO CONTRA  

Estudar o Arquipélago Cinza em que se consolidaram as sete ilhas municipais da região é um imperativo que me impus como provavelmente o último dos raros moicanos que ao longo de décadas se meteu mato adentro desse desafio com tanto afinco, tempo e sortilégio.  

Ou estou enganado? É mesmo difícil encontrar espécimes humanos deste Arquipélago Cinza que tenham a fortuna profissional de poder se dedicar a esse território descontinuado outrora abençoado pelo dinamismo econômico, embora de fato essa engrenagem jamais tenha sido reproduzida para valer em empenho regionalista.  

Temos tudo para ser a soma quando não a multiplicação de sete cidades separadas por emancipações político-administrativas, mas tão próximas e tão potencialmente interligadas. Há pontes a ocupar, canais a construir, mas não saímos do marasmo municipalista que ergue muralhas divisionistas. Retratei tudo isso no livro “Complexo de Gata Borralheira”.  

GRADAÇÕES DISTINTAS  

Arquipélago Cinza não comporta visão de tonalidade cromática exclusiva. Temos cinzas de gradações distintas, embora cinzas continuem a ser. E a visão dos cinzas que se descortinam não é uníssona. O cinza que é mais cinza do cinza do Arquipélago Cinza é o cinza de chumbo grosso.  

Há um efeito deformador ou reparador quando não transgressor ou ilusionista que muda de acordo com quem enxerga as ilhas desse Arquipélago Cinza.  

Se no documentário que trata de longevidade biológica em cinco endereços do mundo da qualidade de vida não faltam exemplos sustentáveis de que há uma variedade de ingredientes a serem observados como fórmulas específicas de como chegar aos 100, no caso do Arquipélago Cinza os distúrbios orgânico-institucionais são internamente semelhantes, por mais complexidade que cada ilha apresenta. 

A enfermidade matricial do Arquipélago Cinza (no caso das Zonas Azuis o objetivo é encontrar pontos específicos de cada endereço invejável) é mesmo o municipalismo, fonte de todas as frustrações. O municipalista autárquico é um câncer sociológico e institucional que há muita virou metástase econômica e social.  

O Arquipélago Cinza não se incomoda com a enfermidade. Por mais provas que povoam cada endereço municipalista, há acomodação generalizada e, mais que isso, compartilhada de covardia que se mistura ao protecionismo seletivo que se junta à preguiça.  

CONTAMINAÇÃO GERAL  

Os representantes do Arquipélago Cinza em massiva maioria entendem que vão salvar a própria pele com os cuidados terapêuticos tópicos e localizados em suas fronteiras. É muita ingenuidade, quando não egoísmo, para não dizer estupidez, quando se sabe por experiência internacional que as sete ilhas próximas e negligentes não escaparão à insidiosa contaminação.  

Aliás, é o que vem ocorrendo há cinco décadas. Corremos numa raia de PIB à velocidade média de 38 quilômetros por hora, enquanto o trôpego Brasil segue ao ritmo de 100 quilômetros por hora. Como o Brasil dos últimos 50 anos é um pangaré internacional, não é difícil entender a que ponto o Arquipélago Cinza chegou. Está virando sucata internacional.  

Caso se formasse uma comissão de notáveis cientistas com a missão de desvendar o Arquipélago Cinza a partir da essência do Arquipélago Cinza, ou seja, subjugado pela definição conceitual do próprio cinza sem luz e sem esperança, provavelmente constataria dificuldades em estabelecer uma hierarquia de gradações do cinza tão expressivamente passivo.  

QUEM GARANTE?  

Quem seria mais cinza que o padrão de cinza conhecido e quem seria menos cinza? Uma métrica que poderia ser utilizada para a gradação dos sete cinzas que imperam nesse arquipélago insistentemente profanador do regionalismo compulsório que está em suas entranhas seria a métrica do municipalismo. 

Seria justo que o cinza mais cinza entre todos os cinzas do Arquipélago Cinza fosse o cinza de São Caetano, por exemplo?  

A cidade mais homogênea da região, onde o municipalismo é quase indevassável, onde as divergências são contidas e as confissões respeitadas, seria São Caetano o cinza mais cinza entre todos os cinzas, ou seja, o endereço mais vocacionado a refugar, quando não a expulsar, qualquer sentido de regionalismo onde impera o municipalismo? 

Os simplistas provavelmente não terão dúvida de que na ilha de São Caetano, a menor das ilhas do Arquipélago Cinza, a cor sombria e sem vida lhe ficaria bem porque internamente não permitiria praticamente variação de tom. 

Mas esse juízo de valor guarda um paradoxo. Afinal, justamente por ter a tonalidade mais cinza e, portanto, amadurecida, quem garante que o municipalismo de São Caetano não seria mais sensível quando perceberem seus moradores que o Arquipélago Cinza pode virar chamas nas próximas décadas, se continuar o ritmo de empobrecimento e de iniquidades sociais que atravessam as fronteiras sem dó nem piedade? 

PARALELISMO  

Chamar atenção à ilha de São Caetano não significa que as demais ilhas do Arquipélago Cinza tenham situação menos desconfortável. A tempestade da desindustrialização ainda vai longe, a criminalidade deixará de ser mascarada por acordos subterrâneos, as fraturas no tecido social resplandecerão cada vez mais. Não há como escapar do vendaval que viraria ciclone.  

É muito pouco provável que sem o amálgama da regionalidade o municipalismo encontre alternativas que livrariam as ilhas do Arquipélago Cinza do naufrágio que se insinua e se concretiza a cada nova temporada.  

O que talvez empurre o barco da esperança em direção a águas menos desaconselháveis é tentar fazer um paralelismo mais que otimista do princípio quase em comum que une os cinco territórios das Zonas Azuis e as sete ilhas do Arquipélago Cinza.   

Os obstáculos criados pela natureza e mesmo pelos homens fizeram de Zonas Azuis a força propulsora de adaptações que se converteram em soluções especiais e que resultaram em modos específicos de vida com vida.  

MUITOS PASSIVOS  

No caso do Arquipélago Cinza, há intrincadíssima engrenagem enferrujada pelo tempo de descaso diante de obstáculos que emergiram, quer em forma de guerra fiscal, quer por causa de um sindicalismo acima do tom democrático ao enxergar capital e trabalho como inimigos, quer por desvarios do governo federal no período de Fernando Henrique Cardoso, que contribuiu à destruição das pequenas industrias, completando o serviço sujo dos sindicatos, quer a construção do trecho sul do Rodoanel com um traçado isolador, além dos dois anos de recessão sem paralelo do governo Dilma Rousseff, entre outras estocadas.   

A verdade que poucos têm coragem de enfrentar, especialmente os tomadores de decisões, é que todos ou quase todos desdenham as sete ilhas do Arquipélago Cinza como peças essenciais à costura de uma solução coletiva. Essa verdade joga sempre o fardo pesado às próximas gerações. Uma saída estúpida porque a cada nova temporada mais se aprofundam o movimento de águas revoltas.  

PEDINDO SOCORRO  

O Arquipélago Cinza pede socorro envergonhado, mas o que predomina mesmo é um salve-se quem puder de individualidades que não ousam desafiar os poderosos de plantão.  

O Arquipélago Cinza é um escárnio sociológico porque não se apercebeu de que não tem nenhuma semelhança com uma moeda que se lança ao espaço à espera da probabilidade de o destino resolver as questões em forma de cara ou coroa.  Seria tão simples se as soluções contassem com o fator sorte. 

O Arquipélago Cinza é a consumação do risco permanente de caminhar diante de cães ferozes do outro lado da grade de proteção sem se dar conta de que uma brecha mais adiante vai provocar estragos. A cerca avariada é a macroeconomia que abate quem mais depende de doenças holandesas, como o setor automotivo e de autopeças das ilhas de São Bernardo, São Caetano e Diadema, e ilhas químico-petroquímicas, de Santo André e Mauá.  

O Arquipélago Cinza está em farrapos institucionais que industrializam iniquidades sociais e desesperança econômica numa escala vista na linha do tempo como persistente, devastadora e incontrolada. 

O Arquipélago Cinza não precisaria repetir o sucesso dos cinco pontos das Zonas Azuis, mas não vai longe sem colocar um ponto final na insistente maquinaria de destruição e passividade.  



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