O segundo tempo judicial do jogo da verdade não se alterou em relação ao primeiro. O Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a sentença de nove anos e quatro meses de reclusão ao agressor de Daniel José de Lima, baleado no rosto à queima-roupa num petshop. Daniel José de Lima foi atingido de surpresa, enquanto segurava as duas cachorras pelas guias.
Daniel José de Lima passou 10 dias entre a vida e a morte. Dois anos e dois meses depois ainda carregam sequelas físicas e emocionais da agressão.
Vou escalonar este texto com os trechos principais (entre parênteses) da sentença proferida pela 1ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, constituída pelo desembargador-relator Diniz Fernando e os desembargadores Figueiredo Gonçalves e Mario Devienne Ferraz.
Minha sugestão aos leitores é que desembaralhem a armadilha editorial que preparei. Leiam primeiro o que está fora dos parênteses e depois o que está entre parênteses. Ou comece pelos parênteses e termine com o que está fora dos parênteses. A ordem dos fatores não deve atrapalhar a compreensão final. Já o não atendimento à sugestão pode sim atrapalhar o entendimento final.
(Inicialmente, a fim de embasar a nulidade, a Defesa sustentou que a testemunha Maria Aparecida Nascimento da Silva, por ser funcionária da vítima por muitos anos, tinha intenção em ver o réu condenado, sendo, porém, rejeitada a contradita. Não houve qualquer vício processual. Realmente, não se encontravam presentes quaisquer das hipóteses previstas no art. 206, nem nos arts. 207 e 208, todos do Código de Processo Penal, para que não se tomasse o compromisso ou se colhesse o depoimento em Plenário da testemunha Maria Aparecida)
Tanto quanto na primeira vez, diante do Tribunal do Júri em São Bernardo, num julgamento que durou 17 horas, o advogado (Ayrton Perroni Alba) de Ageu Galera, o agressor do tutor de Lolita e Luly, inspirou-se nos mais variados autores de ficção para construir a defesa.
O doutor Ayrton sapateou sobre a verdade, fez de meias-verdades verdades impossíveis, estabeleceu um divisor de águas ética em que o réu merecia as portas do céu e a vítima o pior dos infernos.
O advogado de Ageu Galera atuou como se os cinco dias e cinco noites de Unidade de Terapia Intensiva do Hospital São Bernardo teriam sido, de fato, um inesquecível repouso em resort de luxo. Bem diferente, portanto, de uma jornada suficiente para o tutor Daniel José de Lima dar-se conta do que UTI é no mínimo é a porta da casa de Satanás.
(Bem apontou o d. Promotor de Justiça que participo9u do Plenário do Júri ao rebater a arguição (...) que a Defesa também arrolou funcionários do estabelecimento comercial do réu, além de sua própria ex-esposa. Impedir a oitiva de Maria Aparecida violaria a paridade que deve existir entre Defesa e Acusação)
Por sua vez e com a serenidade dos justos e de quem não precisa de muita memória para expor os fatos, porque fatos se consolidam como estrutura sistêmica da verdade, o advogado do tutor Daniel José de Lima pôde exercitar o ofício com eficiência. Alexandre Marques Frias ficou satisfeito com o que viu ao fim da audiência de novas cinco horas: os três desembargadores não se deixaram levar pelas manobras da defesa. O Projac é no Rio de Janeiro.
(A materialidade do crime de homicídio foi demonstrada, em especial, pelo laudo de exame de corpo de delito, prontuário médico da vítima, laudo pericial do local dos fatos, laudo pericial da arma de fogo utilizada e cartuchos e prova oral)
O caso do assassinato não consumado no Pet Shop do Jardim do Mar, em São Bernardo, é tão sustentadamente realidade que jamais deveria possibilitar narrativas fraudulentas, como as do advogado do réu e de algumas testemunhas plantadas para dar veracidade à farsa. Mas o Código de Processo Penal é feito para todos os propósitos em casos semelhantes. Pode-se mentir à vontade. E foi o que fez o advogado do agressor Ageu Galera.
O advogado Alexandre Marques Frias juntou no julgamento no Tribunal de Justiça tudo que existe de provas contundentes para ratificar o crime cometido por Ageu Galera, o jovem marido da dona do petshop, Letícia Galera, mais que aliada, protagonista da tese frouxa de que tudo não passou de acidente. Um tiro à queima-roupa virou tiro acidental.
(A versão da vítima foi confirmada pela testemunha Maria Aparecida, a qual relatou os fatos neste mesmo sentido e frisou que, após a vítima se referir ao réu como “aquele moço”, Ageu ressurgiu apontando-lhe o dedo e dizendo que era “dono do local”. O réu subiu as escadas e depois voltou com a arma em punho, até que mirou no rosto da vítima e atirou. Negou que a vítima tenha dado um beijo na testa de Letícia. Disse que não houve luta entre os dois, pois o ofendido estava segurando as cachorras)
Nenhuma documentação precisaria ser juntada pelo representante legal da vítima Daniel José de Lima se uma peça crucial do crime no petshop não houvesse sido subtraída da história real. Uma peça contundentemente esclarecedora.
Trata-se da gravação do ambiente no petshop. Se o dispositivo tecnológico de segurança contratado pela empresa não fosse surrupiado pelo agressor, em seguida ao tiro que só não foi fatal porque a ciência e a crença entraram em campo, Ageu Galera estaria ainda mais enroscado. Mas o agressor levou embora o equipamento.
(Bruno Rafael disse ser policial militar e que atendeu à ocorrência. Ao chegar ao local a vítima já havia sido socorrida. No local, soube que houve uma discussão, que o réu subiu para o andar superior e retornou com uma arma de fogo, efetuando o disparo. (...) Rafaela, que trabalhava na clínica veterinária, disse que viu o réu passando e em seguida ele efetuou o disparo. Foi muito rápido. Disse que só ouviu o disparo. Não viu luta corporal entre réu e vítima. Também disse não ter ouvido, nem visto, alguém ter ofendido algum funcionário e Rebecca nada mencionou da vítima tê-la ofendido. Também não viu a vítima ter beijado a testa de Letícia. A vítima declarou do atendimento e da demora do estabelecimento comercial)
A gravação do ambiente de atendimento, com câmeras dirigidas especialmente ao balcão, desapareceu nas mãos de Ageu Galera. A Polícia Técnica Científica, presente ao local menos de 60 minutos após o crime, constatou a retirada do dispositivo-chave. As imagens e o som percorreram o mesmo destino de fuga do agressor. Ageu Galera só se entregou à Polícia Civil 30 dias após o tiro à queima-roupa. O equipamento virou pó.
Desta vez, ao contrário portanto da situação anterior desgastante, o tutor de Lolita e Luly preferiu não acompanhar o julgamento. Mais que isso: nem mesmo se interessou pelo decorrer do julgamento.
Traumatizado com as consequências do crime, Daniel José de Lima preferiu, segunda-feira, manter a rotina diária. O advogado Alexandre Marques Frias só o avisou da audiência algumas horas antes da abertura. Explicou a Daniel José de Lima que não queria atrapalhar o fim de semana.
Daniel José de Lima agradeceu. E confessa que o assunto sempre o surpreende quando eventualmente é abordado por amigos e conhecidos. Nem sempre, garante, tem estrutura emocional para relembrar o acontecimento.
(Vale ressaltar que as versões de Ageu e de sua ex-mulher Letícia são um tanto divergentes das testemunhas ouvidas, inclusive de suas funcionárias que trabalhavam no estabelecimento. Rebecca e Rafaela, no que se refere por exemplo ao suposto beijo dado em Letícia ou ao alegado confronto corporal que antecedeu o disparo)
Há um caso emblemático envolvendo Daniel José de lima. Recentemente, almoçava num aconchegando restaurante próximo a sua residência, algo raro para quem passa muito mais tempo em casa, quando foi surpreendido por uma gritaria nas proximidades da porta de acesso. Uma gritaria interpretada como princípio de algo pior. Entrou em pânico. Ficou paralisado. Começou a chorar. Precisou de apoio para chegar em casa.
Esse não é um caso fortuito pós-assassinato não consumado. O tutor das cachorras que foram atendidas naquele petshop em primeiro de fevereiro de 2020 garante que está muito melhor do que antes, já não sonha mais com o tiro no rosto, mas sonha demais com muitas coisas em sonhos interrompidos a cada duas horas.
(A Defesa insiste nas teses de desistência voluntária e de ausência de animus necandi. (...). A pretensão quanto à desistência voluntária ou ao animus necandi não encontra amparo, diante do fato de Ageu ter desferido um disparo de arma de fogo contra o rosto da vítima, como mostra o laudo de exame de corpo de delito. A vítima caiu ao chão, ferida, ao passo que o réu se evadiu. O laudo pericial apontou que, antes de fugir do estabelecimento comercial, o réu retirou o componente de gravação das imagens das câmeras de segurança no segundo pavimento da edificação. Assim, como o réu já havia atingido a vítima no rosto, exercendo amplamente sua potencialidade lesiva, saiu em fuga. Nem mesmo o fato de ainda ter munição permite a conclusão de que tenha voluntariamente desistido de prosseguir na execução. Quem desfere disparo de arma de fogo na face da vítima, atingindo-a, concluiu a execução do crime de homicídio. Quer ou assume o risco de matar. Obviamente não é possível acolher a tese de que o rosto constitua uma região “não vital”, haja vista que se trata de um disparo contra a cabeça, sendo possível até mesmo o dano cerebral)
Para o advogado do réu Ageu Galera, o tiro no rosto de Daniel José de Lima foi quase uma cócegas, tanto trabalhou no processo e expôs em julgamento o desprezo humano pelo ocorrido.
Defender um agressor de tamanha agressividade não comporta, ao advogado em questão, qualquer frequência sincrônica com os fatos e com a sensibilidade de terceiros. A ordem unida que o ligou à mulher de Ageu Galera é simplesmente atacar o agredido, desqualificar o agredido, juntar provas fajutas contra o agredido, negar as evidências, negar as provas.
(O réu, repita-se mirou no rosto da vítima e efetuou o disparo. Não era necessário descarregar a arma de fogo completamente. Nessas circunstâncias, se por algum motivo a vítima não morre, tal como ocorreu no presente caso, é por circunstâncias alheias à vontade do executor, o que caracteriza a tentativa de homicídio. Tivesse sido um ato voluntário de desistência da conduta iniciada, o réu não teria abandonado a vítima caída no local e ido embora. Esta conduta, aliás, bem mostra que acreditou que havia matado a vítima, sua real intenção)
Tanto o Tribunal do Júri em São Bernardo quanto o Tribunal de Justiça de São Paulo não se deixaram levar pela tática da defesa de Ageu Galera.
Depois de 26 meses, o agredido Daniel José de Lima voltou às ruas para readquirir a forma física de quem desafia o tempo. Não está sendo fácil, afirma. Além do enferrujamento natural, precisa driblar as sequelas do tiro da Taurus 38 enquanto segurava as duas cachorras pelas guias. Ou seja: Daniel José de Lima estava completamente fora de ação. Nem mesmo pode levar as mãos ao rosto, foco do atirador.
(A própria testemunha de defesa Rebecca disse que o réu costumava permanecer armado no interior do estabelecimento comercial petshop, o que fazia ilegalmente, porquanto não tinha mais a arma de fogo de guarda civil, por estar afastado. Por outro lado, até mesmo Ageu afirma que, quando a discussão ocorria, levantou sua camiseta e mostrou sua arma de fogo. Armado ilegalmente e exibindo tal circunstância em uma discussão, tudo indica que Ageu nunca se preocupou, na realidade, em reservar a arma de fogo para situações extremas de autodefesa, optando por utilizá-la e até dispará-la de forma leviana, tanto que quase matou um cliente do estabelecimento comercial)
Os dentes que perdeu com o tiro a 1.040 quilômetros por hora e que penetrou perpendicularmente no rosto não voltam mais, claro, mas uma prótese corrigiu em parte a produção original.
Parte da epiglote foi-se embora, mas aos poucos o paladar e o processo degustativo melhoram acentuadamente. A próstata, sob os efeitos do impacto, também passa por tratamento.
(A prova colhida mostra que o disparo foi desferido de forma muito rápida, como apontou a testemunha Rafaela, tanto que a vítima sequer tentou esquivar-se da ação do réu, o que mostra que agiu de surpresa. A vítima estava desarmada e nem mesmo poderia fugir não tendo como como se defender da agressão)
Mais sobre Daniel José de lima, tudo ignorado pelo advogado do agressor? O projétil segue no corpo em vizinhança perigosa com a aorta. Há controvérsias sobre o risco. Médicos tanto alertam sobre os perigos de uma cirurgia de extração como entendem que a medida seria simples. Entre uma opção de hospitalização, anestesia geral e cuidados extremos para a retirada do chumbo grosso e o contraponto de que não seriam mais que necessários 30 minutos para uma retirada quase tópica, simples, sem risco, Daniel José de Lima segue a optar pela prorrogação do tempo de incômodo do material estranho ao corpo. De vez em quando o paladar ácido denuncia o projétil invasivo.
Se tivesse que apontar a maior dificuldade com que convive desde aquela tarde fatal, o tutor das cachorras do petshop diria que segue sendo o equilíbrio corporal e a sensibilidade emocional. O corpo ainda não obedece a mente. Insiste em reagir com certa lentidão e imprecisão diante de qualquer demanda. Seja preparando a comida das cachorras, seja numa compra em supermercado.
Daniel José de Lima descobriu, em constante autoavaliação, que correr na rua é melhor que pedalar uma ergométrica e correr numa esteira. Já experimentou os exercícios, após um longo processo de andar e caminhar.
O tutor de Lolita e Luly chegou à conclusão que o contato com o solo tem efeito regenerador do trapézio, parte superior do tronco, entre o tórax, ombros e pescoço. Nos últimos dois meses de corridas diárias de seis quilômetros, Daniel José de Lima descobriu a corrida como melhor medicamento para superar o corpo bamboleante. Já não quebra nem deixa cair mais utensílios domésticos.
(A pena não comporta redução maior por este fundamento, eis que, conforme a prova produzida, a conduta do ofendido não foi tão extrema, nem proporcional à reação do réu de mirar no rosto da vítima e efetuar o disparo de arma de fogo. As ofensas e atitudes do ofendido não justificariam eventual redução em patamar máximo)
Daniel José de Lima jamais cultivou ambições desregradas com o corpo que mantém os 76 quilos dos tempos de juventude. Antes do tiro de festim, na versão do advogado do agressor, Daniel José de Lima pesava 83 quilos. A perda de sete quilos e os ganhos musculares com exercícios agora levados às ruas parecem regeneradores.
O prevalecimento da verdade sobre a mentira também no segundo julgamento alivia a pressão que Daniel José de Lima sentia intimamente diante do fato de que é a pessoa física da pessoa jurídica do jornalista Daniel Lima.
Daniel José de Lima não se conformava com a possibilidade de além de ter passado o que passou logo após o tiro no rosto naquela primeiro de fevereiro de 2021, carregasse o peso de largar a bomba dos desdobramentos nos ombros do jornalista Daniel Lima. O risco de que o agressor e seu intrépido advogado pudessem comemorar mentiras monumentais percorria as entranhas de Daniel José de Lima.
Aí o prejuízo seria duplamente estigmatizante: a vítima seria desmascarada e a pessoa jurídica teria o trabalho jornalístico sempre sob a desconfiança de que não passaria de uma esteira diária de enganação.
Daniel José de Lima não comemora a desgraça do agressor. Já foi o tempo em que perdia tempo em condenar o agressor e abominar cada minuto das 17 horas do primeiro julgamento. A verdade confirmada e sacramentada é um estímulo à recuperação física e emocional completa. Se for possível.