Nunca considerei para valer a possibilidade de ter alguém interessado em minha biografia. Cheguei a considerar várias vezes uma autobiografia voltada à conexão longeva com inúmeras facetas da regionalidade. Eis que agora fui procurado e aceitei de pronto. Vou me submeter aos fatos de minha vida.
O professor, economista e escritor Edgar Nóbrega, com quem sempre mantive relações à distância por falta de oportunidade de aproximação, quer me ver em formato de livro. Aceitei de bate-pronto. Será uma biografia que esquadrinhará o Grande ABC num compartimento convencional de papel e capa dura. Não ficará pedra sobre pedra. Meu biógrafo não ficará sem resposta.
Minhas polaridades serão escrutinadas. Bipolaridades, para ser preciso. Sem nenhuma conotação medicamentosa. Um exemplo: as razões que me levaram a comemorar nas ruas a vitória de Lula da Silva nas eleições de 2002 e as contrarrazões de torcer por sua derrota no ano passado. O Grande ABC anterior a 2002 e o Grande ABC posterior a 2016 explicam tudo. O conceito é o mesmo. Minha bipolaridade é saudável prova de preservação do instinto de regionalidade, de defesa da livre-iniciativa e de preocupações sociais. As Madres Terezas que criei são provas disso – entre muitos exemplos.
A proposta foi feita em telefonema sexta-feira de manhã. Passei as últimas 60 horas pensando no assunto. E cheguei à conclusão de que tenho muito o que contar. Mas o que me deixou mais encafifado mesmo é como pode alguém desta Provincia tão desvalorizada virar livro.
HERANÇA FABRIL
Aqui, embora não faltem exemplos de gente qualificadíssima, o conhecimento imaterial vale muito menos que exibicionismos materiais e empoderamento social. As manchetes das mídias comprovam que vale mais um oportunista na mão do que dois produtivos arredios e distantes.
Não se poderia esperar algo tão diferente de uma região moldada culturalmente nos chãos de fábricas fordistas, de linha de produção que entorpece a criatividade e se mantém fluente na rotinização de movimentos sincronizados de corpos e máquinas em busca de produtividade. Sem contar que do outro lado do balcão tampouco se poderia esperar algo diferente ante a escassez de tempo de pequenos empresários às voltas com a sobrevivência dos negócios.
Ou seja: estruturalmente, como sociedade, o Grande ABC de cabeças pensantes fora dos gramados corporativos de produção jamais se notabilizou como fonte de inspiração. As exceções confirmam a regra.
ENGRENAGEM PRODUTIVA
O Grande ABC predominantemente de engrenagem social e econômica industrial aos poucos vai alterando o ritmo de percepções. Dá-se mudança na exata medida em que menos empregos industriais resistem à dinâmica de transformação produtiva. A criatividade costuma dar as caras nos momentos economicamente difíceis.
A cultura do conhecimento abstrato em substituição à expertise ocupacional talvez seja a esperança mais sólida de que um dia chegaremos ao patamar necessário para entender o quanto a regionalidade é nossa única saída. Ainda vivemos sob os efeitos inerciais de cumprimento de tabelas fabris.
Por isso o pedido do professor e escritor Edgar Nobrega é espécie de convocação. Vou me meter mato adentro de uma aventura no bom sentido do termo.
Não poderia jamais desperdiçar a oportunidade. Preciso repassar polaridades que resumem minha vida e em muitas situações a experiência impagável de viver num laboratório humano especialíssimo chamado Grande ABC.
Caí na real de que sou polaridades ambulantes exatamente a partir da imaginação do que seria o escopo de biografia proposta. Quem é jornalista sabe que o grande desafio de cada texto é encontrar um ponto nuclear à definição estratégica do que se pretender escrever. Um eixo de interlocução lógica com o conjunto de informações.
VIDA TRIDIMENSIONAL
Sei lá se meu biógrafo vai pegar essa estrada metodológica. Talvez ele consiga ser mais competente e criativo do que eu, porque talento não lhe falta (vejam logo abaixo a preciosidade do texto que preparou para me chamar à biografia), mas o fato é que vou seguir mais ou menos isso para dar a ele facilidades de compreensão.
Minha vida pessoal e minha vida profissional se misturam até o ponto em que uma não atrapalhe a outra. Costumo dizer que minha pessoa física é Daniel José de Lima, meu nome de batismo. E que minha pessoa jurídica, ou seja, de jornalista, é Daniel Lima.
Vou contar para o professor e escritor Edgar Nóbrega que meu lado Daniel José de Lima de ser é típico de um interiorano que veio em cima de uma carroceria de caminhão junto com uma penca de irmãos para tentar a sorte no Grande ABC. De classe média a migrante do Interior do Estado, tive de recomeçar a vida num ambiente estranho e disruptivo.
ORIGEM DA BIPOLARIDADE
Já meu lado Daniel Lima, que começou no mesmo Interior aos 15 anos de idade, numa revista semanal feita no chumbo do sistema Gutemberg, esse meu lado é minha porção de ceticismo indispensável à sobrevivência reputacional.
Herdei de meu pai Gabriel a simplicidade e a confiança irrestrita em terceiros. Esse é o Daniel José de Lima. De minha mãe, Maria Christina, filha de espanhóis, capturei como jornalista a vertente interrogativa. Por isso que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.
Também vou dizer ao biógrafo que minha Complicadíssima Trindade se completa com Leinad Amil, ou seja, Daniel Lima ao contrário.
Leinad Amil é o Daniel Lima que todos os prevaricadores gostariam que fosse. Leinad Amil seria o profissional sempre disposto a perfilar entre a maioria de mandachuvas e mandachuvinhas cega, interesseira, relapsa.
Tenho contradições a relatar. Vou tentar explicar como alguém que aos seis anos de idade mal conseguia fazer-se entender ao atropelar as sílabas, poderia, mais tarde, virar um orador que todos dizem ser de primeira.
Um orador que frequentou os mais diferentes ambientes e que durante 15 anos, duas vezes por ano, fez do púlpito do Prêmio Desempenho a maior prova de compreensão e respeito, controlando completamente o ambiente. O silêncio da plateia era um convite ao malabarismo fonográfico de um inseto voador qualquer.
Vou contar ao meu biógrafo coisas bastante interessantes que ajudam a entender o perfil do biografado. Principalmente o destemor de confrontar o que parece inquestionável, de desmascarar o que não passa de fraude e de abrir veredas de alternativas à região.
VEJA A CONVOCAÇÃO
Para completar, vou reproduzir a mensagem que recebi de meu biografo. Enviada não mais que 20 minutos após responder a ele que a biografia seria uma honra e, mais que isso, que jamais interferiria no que pretende, enquanto ele respondia pretender fazer uma obra em estreita comunhão com uma pauta em comum. Vejam o que Edgar Nóbrega me enviou:
Daniel José de Lima:
uma biografia necessária
Não se pode escrever nada com indiferença.
Simone de Beauvoir
A minha história pessoal mistura economia, política, educação, um pouco de música e a vontade de fazer boas comidas.
Sempre procurei viver fazendo aquilo que acredito, sempre manifestei minhas convicções mesmo quando estas eram polêmicas e até contraditórias com os sentidos dos stabeleshiments de ocasião.
A economia me ensinou a fazer contas e pensar os números, mas sempre tive a convicção de que a vida é muito mais do que uma porção de cálculos exatos.
Os mais de 25 anos fazendo aulas de economia e outras disciplinas em universidades colocaram a necessidade de tentar explicar didaticamente questões áridas e as vezes pouco compreendidas.
A política sempre me sugeriu a necessidade de fazer conversas e buscar a construção de agendas garantidoras do bem comum, nos cargos que ocupei eu sempre trabalhei com espirito público a favor da verdade.
A música sempre me fascinou, “levo a vida na flauta” como hobby e para tentar sorrir um pouco mais, sigo a máxima de “sorrir e ir mentindo a minha dor, pois sei que quando outros notam que sorrio supõe que sou feliz” e neste mundo de tantas aparências às vezes vale mais uma imagem que um sentimento e uma ou tantas palavras.
E a culinária me ajuda a tentar juntar o desejo de servir e o prazer de bem se alimentar, e sempre que preparo um prato faço questão de perguntar: “Ficou bom”, risos.
Pois bem, nestes últimos tempos tenho me dedicado a escrever mais, tenho desenvolvido um caminho de escritor e agora faço publicamente um pedido para que Daniel José de Lima, mais conhecido como Daniel Lima autorize a produzir a sua biografia.
Daniel é jornalista e poderia muito bem fazer a sua própria biografia, afinal de contas é dele a esperança que o faz esperar os 21 anos da fila de espera por título do seu inominável time.
É de Daniel a garra que o faz suportar um tiro no rosto e na sequência perdoa o criminoso inescrupuloso.
Mas Daniel resiste a leões em sua vida repleta de polêmicas, o sujeito é um polêmico por excelência, o que me faz ser um de seus admiradores.
Eu confesso que tenho uma porção de motivos para não ter tantos encantos por este jornalista que conheci desde os tempos da Livre Mercado, quando alfinetou fortes críticas a minha dissertação de mestrado.
Tenho certeza que a produção desta biografia poderá suscitar uma série de questões que de alguma maneira nos ajudarão a compreender melhor a nossa história e o nosso futuro regional.
Daniel Lima, peço que pense com carinho e responda o meu pedido.
E podes ter a certeza que assim como sugere Simone de Beauvoir: “Não se pode escrever nada com indiferença”.
Este será um texto com as marcas da criatividade e da ousadia. Não precisa ter pressa, afinal de contas minha vontade será fazer desta biografia um prato com todos os temperos que o cardápio da sua vida merece.
Grande abraço;
Professor Edgar Nóbrega
Economista e escritor