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Sociedade

DANIEL LIMA - 28/06/2022

Acho que finalmente encontrei uma metodologia para lidar com a morte de alguém, seja morte morrida ou morte matada. O constrangimento associado ao dilema de escrever ou não escrever sobre alguém que se foi sempre me inquietou.  

Geralmente corro em direção ao teclado de computador com o ânimo de um pianista que um dia poderia ter sido. Quando me sento ao computador já tenho a estrutura conceitual do que se seguirá. Somente nos casos de morte morrida ou morte matada fico entre a cruz de dedilhar e a espada de desistir. Imaginem o que significa tudo isso para alguém assertivo?  

Passei o domingo pensando no assunto e decidi ir à luta. Juntei quatro departamentos temáticos e acho que encontrei a fórmula justa e correta de não cometer injustiças. Não é fácil alcançar esse equilíbrio. No fundo, nem sei de fato se o encontrei. Pode ser que não.  

MORTE DOS OUTROS  

Sei que escrever sobre morte morrida ou morte matada é o caminho mais curto à melancolia, mas é preciso escrever sobre morte morrida ou morte matada enquanto estamos vivos, principalmente após a morte matada nos ter rondado. Já a morte morrida não está no meu radar biológico. Ao que saiba, claro.  

Acho o assunto tão delicado que, como acredito que passo com certa folga pelos critérios departamentais que criei, talvez escreva sobre minha morte antes que a morte chegue para valer.  

Só vou lamentar não escrever sobre a morte daqueles que morrerão depois de mim, por mais que torça para que eles vivam muito morram bem depois de mim.  

A região é tão múltipla em gente produtiva e em falsários que uso de cabotinagem explícita para dizer que vai fazer falta um texto ou uma suposta omissão de texto quando eles se juntarem ou não a mim na plataforma lá em cima.   

Se aquela bala de primeiro de fevereiro do ano passado fizesse mais estragos do que fez, teria morrido sem ter deixado parecer sobre minha morte matada. Seria o fim da picada.  

O Daniel José de Lima não perdoaria o Daniel Lima. Já o Leinad Amil, intermediário dessa tríplice personalidade convexa, acharia tudo normal.  

TRIPLICE PERSONALIDADE  

Leinad Amil é o contrário do Daniel Lima e um espectador do Daniel José de Lima. Leinad Amil acha o mundo uma maravilha. Daniel José de Lima é um otimista cauteloso. Daniel Lima é um cético ajuizado. Não é fácil controlar essa turma.   

Deixar para terceiros escreverem algumas linhas sobre a morte de Daniel Lima seria estupidez. Os amigos em larga maioria não são desse ramo, os adversários não estão nem aí com o cheiro da brilhantina e os inimigos, inclusive entre aqueles que lidam com manchetes,  parágrafos e textos mal-ajambrados, deixaram aqui e acolá as marcas da maldade ou da incompetência que jamais vou esquecer no caso de primeiro de fevereiro – não é verdade, Diário do Grande ABC? 

Devo reconhecer, a tempo, que não faltam amigos jornalistas que saberiam escrever o que seria permitido escrever sobre a morte morrida ou morte matada de Daniel Lima. Quero que eles vivam muito porque o passado é meu salvo-conduto a idiossincrasias de bandidos sociais. 

Afinal, quais são os quatro departamentos metodológicos que criei para definir se escrevo ou não sobre a morte de alguém? Vejam: 

a) Departamento de Relevância Social.

b) Departamento de Relevância Institucional. 

c) Departamento de Produtividade Social. 

d) Departamento de Relevância Pessoal.  

RELEVÂNCIAS 

Viram como não é fácil escrever sobre morte morrida ou morte matada? Pensei em estabelecer pesos ponderados a cada um dos departamentos. Decidi mudar de ideia porque as métricas são um bom referencial, mas também podem ser profundamente subjetivas.  

Em determinadas situações o Departamento de Relevância Pessoal, aparentemente o menos importante numa escala de valores públicos, embora possivelmente o mais crucial em termos privados, pode, somado a um ou outro departamento, ganhar destaque e virar objeto de edição.   

Meu pai completaria 100 anos em 23 de outubro do ano que vem. Se estiver vivo, talvez escreva sobre a importância dele à minha vida, embora não tenha tido na região imbricamentos abundantes como em Guararapes e Araçatuba, Interior do Estado, de onde vim na carroceria de um caminhão de mudanças. Gabriel José de Lima foi um homem de sete instrumentos. Fantástico. 

ESQUEMA DEFINIDOR  

Exatamente por conta disso, desse exemplo familiar, e também de outros exemplos, institucionais, corporativos, pessoais e sociais, decidi esquematizar e definir sobre quem escreveria quando a hora fatal chegar.  

Os pesos ponderados que devem alinhavar a construção de uma nota final de zero a 10 para me submeter ao escrutínio do bom senso sobre a morte morrida ou morte matada de alguém são pesos ponderados flexíveis, portanto.  

A escala inicial foi jogada no lixo porque dava ao critério de pessoalidade baixa aderência valorativa. Eram mais proeminentes aspectos sociais, institucionais e produtivos.  

PESOS PONDERADOS  

Volto ao meu pai como exemplo, até mesmo para que os leitores não me julguem mal como suposto aferidor arbitrário de medidas pós-morte de alguém mais vivo na memória pública. 

O peso ponderado do critério de pessoalidade que impactou a avaliação da morte de meu pai é extraordinariamente maior que os demais, os quais ele não preencheu nestas terras, embora tenha extrapolado em terras distantes. 

A relevância institucional, a relevância social e a produtividade social giram no mesmo eixo nas mortes morridas e nas mortas matadas.  

Não é possível separar os três departamentos. Uma coisa leva à outra e à outra e as três coisas constroem o perfil do morto que passa pelo corredor crítico da informação pública.  

FACES DIFERENTES  

Informação pública sobre uma morte e outras mortes não tem necessariamente nada a ver com solidariedade pessoal e inesquecível no caso de outras mortes. Posso ir a um enterro, chorar doloridamente e não reproduzir em texto uma única linha sobre o morto. Já foram muitos esses casos. 

De outro modo, posso repetir a mesma equação de dor e o morto de morte matada ou morrida virar uma homenagem publicada. O peso da pessoalidade é também uma geleia de subjetividades.  

O que quero dizer com tudo isso é que é impossível separar jornalismo da pessoa física e também daquele tal de Leinad Amil que se mete nas minhas entranhas psíquicas e emocionais. Se esse trio já não fosse suficiente em forma de convivência integrativa, imagina quando terceiros, mortos de morte matada ou morte morrida, entram na lista de preocupações e definições do jornalista? 

IMPOSIÇÕES PSICOLÓGICAS  

Alinhavei os critérios acima mencionados justamente para tentar reduzir a carga de imposições psicológicas que o jornalista impõe à pessoa física e ao personagem que, por seu meu contrário, vê o mundo cor-de-rosa, com baixíssima vocação à crítica, o tal de Leinad Amil.  

Não sei se os leitores captaram o meu drama triplamente qualificado. Acho que sim.   

Devo ou não devo escrever sobre determinadas mortes de gente proeminente na sociedade regional? Esse foi o gatilho que me levou a preparar esse texto.  

Precisava acabar com esse turbilhão interno que sempre me incomodou como jornalista. Escrevo ou não escrevo?  

SÓ POR FORMALIDADE?  

Repito: escrevo ou não escrevo? Escrevo por escrever, por qualquer coisa que possa se encaixar em todos os tipos de diplomacia e suposta formalidade profissional, até mesmo contrariando meus textos anteriores sobre a morte morrida ou matada do morto que virou notícia?  

Viram que tenho potenciais motivos para escrever ou não escrever sobre morte matada ou morte morrida?  

A morte matada ou morte morrida de alguém com que me relacionei profissionalmente ou pessoalmente seria uma quase-obrigação?  

Muito antes de ter encontrado uma fórmula avaliativa como espécie de curadoria para me lançar ou não às águas de textos politicamente corretos sobre a morte matada ou morrida de gente que ao longo de anos acumulou capital informativo, já arbitrava internamente, sem qualquer estrutura metodológica, determinados conceitos definidores.  

SENTENÇAS PÓS-MORTE 

Agora me sinto mais preparado para não sofrer tanto quando alguém com notoriedade ou notabilidade morrer de morte matada ou morte morrida.  

Espero não ter cometido nenhum pecado no passado ainda sem lastro pedagógico estruturante à empreitada de levar aos leitores quem era o novo desfalque do time dos vivos na região, ou mesmo fora da região. 

Acho que em nenhuma situação me lancei a preparar sentenças pós-morte de quem em vida, por dever de ofício, fiz restrições duras em confronto com as linhas gerais de compromisso social da linha editorial de minha vida vivida no jornalismo.   

PRÓPRIO EPITÁFIO 

Essa premissa inclui pessoas que morreram de morte matada ou morte morrida com as quais mantive convivência pessoal harmoniosa, muitas vezes divertida, mas que, no campo de luta social, pouco atenderam aos pressupostos deste profissional.  

Ainda acho que não vou precisar me precaver demais com as linhas que vou escrever sobre mim mesmo e que constarão deste site pós-morte.  

Minha morte morrida ou matada, mais provável matada do que morrida, ainda deverá demorar. Tenho dúvidas sobre qual seria o melhor epitáfio em minha lápide. 

A opção mais provável à lápide seria mais ou menos a seguinte: “Agora, seus canalhas, mintam à vontade!”.  



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