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Caso Celso Daniel

DANIEL LIMA - 24/01/2022

Duvido que a série documental que a Globoplay apresentará em oito capítulos, dois disponíveis a partir desta quinta-feira, dia 27, não contemplará uma revelação que fiz durante as gravações e que, de posse da força-tarefa do Ministério Público em Santo André, em 2002, teria impacto suficiente para mudar o rumo da disputa presidencial vencida pelo petista Lula da Silva. 

Fui convidado para aquele que será, sem dúvida, o melhor e mais bem apurado documentário cinematográfico sobre o assassinato do prefeito Celso Daniel.  

Seguramente sou o único jornalista que acompanha o caso desde então. Muitos caíram pela jornada, após iniciada, outros chegaram e também tomaram outros rumos. A maioria passou de passagem. Correndo mesmo paralelamente aos acontecimentos, somente este jornalista. Durante 20 anos seguidos. Isso não é cabotinismo. É informação relevante.  

LONGEVIDADE RELEVANTE 

Por que é relevante ser informado de que somente este jornalista, ninguém mais que este jornalista, acompanha há tanto tempo o Caso Celso Daniel? Porque se evitam distorções. A quase totalidade dos jornalistas que cobriram temporalmente o assassinato do prefeito de Santo André o fez seguindo ritual de unilateralismo ditado pela força-tarefa do MP. Por razões que já expliquei.  

O ponto de interrogação do título é quase que uma formalidade, além de cuidado ético, ante a lógica do documentário, ou seja, um projeto que não vai deixar pedra sobre pedras de dúvidas sobre o crime que abalou o País. 

Na verdade, não é apenas a revelação em si que está em jogo, mas também o contexto em que a expressei e o dilema que vivi durante 18 anos. Que dilema? Se deveria ou não romper um dos mandamentos sagrados do jornalismo, ao qual sou obediente servo: o segredo da fonte?  

Sigilo da fonte está para o jornalismo assim como o confessionário para o sacerdote. É inviolável e está acabado.  

PORTA ABERTA  

Seria isso mesmo, inviolável, ou haveria uma porta aberta de exceção à regra para justificar, ou mesmo tornar obrigatório, quase compulsório, um cavalo de pau no conceito?  

Como, então, este jornalista velho de guerra e de labutas quebrou o juramento e entregou a rapadura de uma informação preciosíssima aos profissionais da Escarlate Produções que cuidam da série de oito episódios e 32 entrevistados? 

Pensando bem, não estou quebrando apenas o sigilo da fonte, mas os insumos da fonte. A informação jamais foi publicada, nem mesmo sob a proteção legal de esconder o autor. Até porque, a informação sem revelar o autor perderia todo o sentido.  

O autor dá uma força extraordinária ao conteúdo, porque o ator é protagonista do conteúdo, não um mero repassador de informação graduadíssima.  

FONTE E SEGREDO  

Quando se revelam o autor e o segredo da mensagem, têm-se dose dupla de importância. Dizer determinada coisa sem convergir o enunciado ao autor é algo como gritar um gol sem nominar o responsável, ou omitir o goleiro da Seleção Brasileira na derrota final na Copa do Mundo de 1950. O nome, nesse caso, acabou amaldiçoado.  

A fonte do sigilo, como está na manchetíssima acima, é Sérgio Gomes da Silva, a quem a força-tarefa do Ministério Publico estacionada em Santo André para apurar o Caso Celso Daniel atribuiu o codinome de “Sérgio Sombra” ou simplesmente “Sombra”. Uma maneira deliberada de estigmatizar Sérgio Gomes. Torná-lo uma figura marginal, de marginalidade.  

Pois o segredo me contado por Sérgio Gomes da Silva resistiu ao tempo e resistiria ainda mais se não houvessem duas motivações interligadas: a morte de Sérgio Gomes e o resgate responsável da história do Caso Celso Daniel por profissionais de cinema que se esmeram na produção de documentário histórico. 

HORA DE CONTAR  

Naquela manhã-tarde de 8 de maio do ano passado, quando passei cerca de oito horas nos estúdios da Escarlate, epidemia de Coronavírus a ameaçar a todos, e ainda me recuperando de assassinato não consumado de primeiro de fevereiro, não resisti ao dilema: conto ou não conto o que meus olhos viram, o que meus ouvidos escutaram, o que minha mente gravou? Contei. 

Contei mesmo e não me arrependo. Era o momento que compreendia mais simbólico, responsável, humano, desprendido, de repetir o que Sérgio Gomes da Silva dissera a mim durante uma mistura de churrascada e feijoada na casa que ele mantinha num condomínio fechado em Santo André. Confesso que ouvi estarrecido. E também aliviado. 

O que Sérgio Gomes da Silva me disse a respeito do Caso Celso Daniel não me surpreendeu em nada, porque já dispunha de provas suficientes de que o crime era urbano, restrito à selvageria na área de Segurança Pública na Grande São Paulo, com ramificações por grandes cidades do Interior do Estado.  

VERSÃO FRAUDULENTA  

Portanto, um caso fora da zona de gestão administrativa do PT de Santo André tendo Celso Daniel à frente da Prefeitura. Essa, como se sabe, foi a versão que prevaleceu e prevalece na sociedade.  

O PT, vejam só que despautério conclusivo, matou a galinha de ovos de ouro de arrecadação paralela, justamente a arrecadação paralela que constava do portfólio de muitos ativos da gestão Celso Daniel. Só mesmo na cabeça vazia de ressentimentos, ideologia e também de autoritarismo é possível acreditar nessa lorota. Mas a quase totalidade acredita. São as estripulias do mundo da comunicação. 

A diferença entre o que eu sabia como jornalista e as pressões que Sérgio Gomes sofria por conta das investigações da força-tarefa do Ministério Público era enorme. Não denuncio nem mando prender. Tanto que aquele almoço num local cercado de verde se dera justamente na mesma semana da soltura de Sérgio Gomes de uma prisão no Interior, após ser denunciado como mandante do crime. 

INTIMIDADE DIFERENTE 

Um ponto que torna a revelação de Sérgio Gomes intrigante é que aquele almoço marcou meu segundo encontro com o homem acusado pelo Ministério Público. O primeiro, pouco tempo antes, revelo na série documental da Globoplay.  

A tradução disso é que não tinha intimidade alguma com Sérgio Gomes para ser recompensado com uma declaração daquelas. Intimidade alguma é algo relativo. Há muitas pessoas que se relacionam diariamente e não são íntimas no sentido de compartilhar informações, angústias, emoções.  

O Sérgio Gomes da Silva que encontrei naquela casa campestre era íntimo de mim porque durante todo o tempo, antes e durante a prisão, estava muito próximo dele.  

CONSUMINDO TEXTOS  

Ganhei a confiança de Sérgio Gomes porque não houve no jornalismo verde e amarelo um profissional de comunicação sequer que tenha saído em sua defesa, primeiro da desconfiança, depois da ordem de prisão por supostamente mandar matar o prefeito Celso Daniel.  

Diferentemente disso: todos ou quase todos auxiliaram a força-tarefa do MP na pressão condenatória que o juiz do caso não teve dúvidas em avalizar.  

Soube tempos depois que todos os textos que escrevi em defesa da verdade, que coincidia com a inocência criminal, foram lidos por Sérgio Gomes, abastecido por amigos. Serviram sempre, aqueles textos, soube depois, de conforto ao coração sobressaltado de quem passou a viver um inferno após o sequestro e morte de Celso Daniel.  

FUNÇÃO SOCIAL  

Possivelmente na cabeça de Sérgio Gomes da Silva que, na estrada, recém-saído da prisão, ligou para me convidar àquele almoço, estava a determinação pessoal de que precisaria me agradecer.  

Uma bobagem para quem tem a função social, como o jornalismo, de procurar retratar a realidade dos fatos. Naquelas circunstâncias, entretanto, a sensibilidade de Sérgio Gomes me enterneceu. Jamais escondi que o colocava na condição de um inocente a serviço de uma narrativa espetaculosa e insustentável. A ira dos extremistas sempre se manifestou. 

Se você está esperando agora pela revelação de Sérgio Gomes que custei a me convencer de que poderia ser exposta, como o foi à direção da Escarlate, pode tirar o cavalinho da expectativa da chuva. Respeitosamente, claro. 

 Somente vou me manifestar após os oito episódios da Globoplay. Não tenho a garantia de que aquele trecho da entrevista será levado ao público, mas duvido que, diante das circunstâncias, não seja dado um destaque. Afinal, se trata de um marco de inflexão à retirada do ponto de interrogação sobre a motivação do crime.  

CARTA DO BARALHO  

Para que os leitores não se sintam frustrados pelo adiamento do conteúdo daquele desabafo de Sérgio Gomes, o que posso antecipar é que a frase no contexto em que fora despejada com emoção e choro, era a carta do baralho pela qual a força-tarefa do Ministério Público tanto almejava para tornar o Caso Celso Daniel um estouro da boiada petista no ano eleitoral de 2002, quando houve o crime e a disputa presidencial em que Lula da Silva finalmente chegou ao Palácio do Planalto. 

Vou repetir para que não haja dúvida: fizesse Sérgio Gomes ao MP em 2002 a declaração que fez a mim naquele almoço em meados de 2004, os rumos das eleições presidenciais seriam outros por razões que, se colocar agora, provavelmente se tornaria o ponto de inflexão à descoberta do segredo ao qual somente os assinantes da Globoplay terão acesso durante os episódios do Caso Celso Daniel.  

Dessa forma, volto ao princípio deste texto: afinal, o que me convenceu de que poderia romper o lacre do sigilo da mensagem e também da fonte para revelar o que revelei aos diretores da Escarlate, parceira da Globoplay? Simples: Sérgio Gomes da Silva deveria sim ser salvo pelo gongo da realidade dos fatos.  

QUESTÃO HUMANITÁRIA  

Vítima de acusações infundadas no campo criminal, Sérgio Gomes morreu em 27 de setembro de 2016 sob o coro popular de mandante do assassinato de Celso Daniel. Uma aberração construída por uma narrativa disforme, cruel e manipulada.  

Se minha cabeça não falhou naquela entrevista para o documentário da Globoplay (afinal, completava apenas três meses do impacto do projétil a 1.040 quilômetros por hora que invadiu meu corpo, boca adentro) eu fiz uma projeção em forma de futuro justo a Sérgio Gomes da Silva, retirando-o de um determinado lugar e colocando-o numa plataforma simbólica que será provavelmente inserida no documentário.  

Ou seja: o destino foi cruel com Sérgio Gomes da Silva, primeiro-amigo de Celso Daniel. Sérgio Gomes foi o parceiro com o qual o então prefeito de Santo André jantou na Capital naquela fatídica noite de 18 de janeiro de 2002, quando trataram de procedimentos preliminares da campanha de Lula da Silva à presidência.  

RECONHECIMENTO DO PT 

Como se sabe, Celso Daniel já havia sido nomeado coordenador-geral do programa de governo. E estavam plantadas as bases para virar um dos ministros de destaque do governo de Lula da Silva. Toda a expertise em Santo André ganharia dimensão nacional. Todas, todas e todas que fundamentaram a escolha do time de primeira linha de Lula da Silva. 

Não rompi um acordo desnecessariamente tácito com Sergio Gomes da Silva ao transportar o desabafo daquele almoço de 2004 a um estúdio cinematográfico. Fiz apenas o dever humanitário do qual jamais me arrependerei: desloquei o caso de um passivo duplo, de corrupção e encomenda de morte, para uma esfera muito mais justa e verdadeira.  

Falta ao PT esse reconhecimento. Esse é o drama do partido. Mais não posso escrever porque se escrever rompo o compromisso de confidencialidade com a direção da Escarlate.



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