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Sociedade

DANIEL LIMA - 02/09/2021

É impossível não carregar na lembrança as Nossas Madres Terezas. Elas viraram o centro de atenção do Prêmio Desempenho de múltiplas temáticas que a revista LivreMercado organizou durante 15 anos. Oito desses anos contemplaram mulheres da periferia que cuidavam de excluídos sociais. Mulheres maravilhosas que batizei de Nossas Madres Terezas numa Reportagem de Capa de 2001 de LivreMercado.   

Tenho muita saudade de Nossas Madres Terezas e de todos que as apoiaram, especialmente José Antônio Monte, então comandante da rede de lojas da marca Coop. Na esteira do projeto editorial, Monte lançou e aperfeiçoou uma ação de suporte material e financeiros às entidades que elas representavam. Monte faz falta a um Grande ABC que se desumaniza no calor da disputa pela sobrevivência.    

Quero saber por onde andam as Nossas Madres Terezas? Quero saber também de potenciais novas Madres Terezas? E, por que não, já que os acrescentei ao projeto de reconhecimento de solidariedade, onde estão aqueles que chamei de Freis Galvão, isto em 2008. Era o último ano da premiação mais comprometida com a meritocracia que já se viu na praça – uma ação que não abria mão de auditoria externa para conferir as notas de um Conselho Editorial que chegou a contar com duas centenas e meia de formadores de opinião. O Prêmio Desempenho teve longevidade e credibilidade porque não tinha mutreta.  

Choro coletivo   

Sei que sei que passados 13 anos desde a última edição de Nossas Madres Terezas, algumas já se foram deste mundo. Mamãe Clory, possivelmente a mais lendária, partiu já faz tempo. Mas deixou legado de apoiadoras.  

O Projeto Nossas Madres Terezas é um dos maiores orgulhos deste jornalista porque impediu que me tornasse um fazedor de informação e de análises insensível à atmosfera social indispensável à indignação. Sou resultado de minhas circunstâncias.    

Nossas Madres Terezas me fizeram chorar muitas vezes. O primeiro choro por causa de Nossas Madres Terezas a gente não esquece. Foi um choro coletivo. Deu-se naquela noite de setembro de 2001, num Tênis Clube de Santo André lotadíssimo para acompanhar a entrega do Prêmio Desempenho em várias categorias.   

Ali lançamos a série dedicada a essas mulheres que juntavam com devoção os excluídos sociais de vários tons e os abrigavam em sedes modestas e sempre carentes de apoio financeiro e material.  

Templo dos ricos   

Naquela noite o Tênis Clube de Santo André, então um endereço dos endinheirados, mesmo que não tão endinheirados quanto nos tempos de Santo André Industrial, emocionou-se como a apresentação das primeiras nove Madres Terezas de uma safra que chegaria a 74 em 2008.   

A apresentação foi uma mistura de solidariedade, encantamento, compaixão, surpresa e tudo o mais que pudesse ser colocado num caldeirão de emoções impactantes além do previsível. A novidade na grade de premiações fora anunciada com antecedência, os convidados sabiam o que os esperavam, mas ninguém calculou o quanto seria chocante. No templo dos ricos de Santo André, entregamos a crueza da realidade dos necessitados.    

Uma telona mostrou as imagens de gravações dos locais e das gentes que ocupavam os redutos de amor ao próximo das Madres Terezas. Ao som de Mercedes Sosa, na obra-prima de Gracias a La Vida, o Tênis Clube chorou abundantemente, visto como vi escondidinho num canto do palco, entre cortinas, bisbilhotando a vida emocional alheia enquanto enxugava as próprias lágrimas.   

Não consigo captar na memória ainda viva algo semelhante na história do Prêmio Desempenho ao longo de uma década e meia. Nossas Madres Terezas despejaram uma torrente de realidade nua e crua que habita principalmente as periferias do Grande ABC.   

Cotidiano heroico  

Lembrei-me das Madres Terezas agora, embora jamais as tenha esquecido, porque meu filho, André Marcel, jornalista e tradutor, além de devoto a Cristo, me mandou uma mensagem de celular em que, ao mesmo tempo em que comemora mais uma obra sobre a qual dedica-se a domesticar uma língua estrangeira, no caso o inglês, mencionou aquelas mulheres maravilhosas e os desafios recorrentes de um cotidiano heroico.   

Não disse a ele e talvez jamais tenha revelado publicamente que as Madres Terezas me enfiaram uma goleada coração adentro porque não suportei mais que uma visita in loco aos locais em que desenhavam um quadro de recuperação de almas, corpos e mentes de meninos e meninas, jovens e idosos maltratados pelo destino.  

Não disse ao André Marcel de Lima, jornalista de primeira linha, cujos textos, muitos textos, estão neste acervo, dos tempos de LivreMercado, não disse a ele que renunciei lamentavelmente aos convites posteriores do amigo José Antônio Monte, da Coop, para que o acompanhasse nas jornadas de aferição de necessidades daquelas casas de solidariedade, a fim de providenciar investimentos da cooperativa de consumo.   

Fugindo das arenas   

Bastou a primeira visita a uma entidade que cuidava de crianças especiais, bastou isso para que fosse este jornalista ferido fundo na alma. Senti que perderia o entusiasmo necessário para dedilhar palavras e palavras como agente de comunicação se me metesse naquelas incursões num mundo definitivamente impactante.  

As Nossas Madres Terezas também foram lembradas a mim recentemente, quando um telefonema de um amigo que não vejo há muito anos, mencionou aquele projeto como o que considera o mais significativo a um profissional de imprensa. Foi Nívio Roque, ex-executivo de brilho intenso no Polo Petroquímico de Capuava, um exemplo de ser humano, quem me transmitiu aquele mensagem, mal completara este jornalista 20 dias de alta hospitalar.   

Com a franqueza de sempre, que alguns confundem com outras coisas, o que tenho a dizer do fundo do coração sobre as Madres Terezas, e também sobre os Freis Galvão, é que todos me ajudaram no processo de recuperação física e clínica, porque as boas lembranças nos acalentam e nos embalam. Assim como os amigos de verdade que nestas horas não faltam, mesmo que afastados durante longo tempo por causa de vicissitudes naturais de relacionamentos.   

Ficaria imensamente feliz se alguém aparecesse para dar continuidade àquele projeto. Onde estão Nossas Madres Terezas? O que fazem aquelas mulheres e suas herdeiras?   

Nascedouro do projeto  

Para completar, reproduzo os primeiros trechos da Reportagem de Capa de LivreMercado de março de 2001, quando se consumou de vez a expressão que seria levada ao Prêmio Desempenho e se plantava, também, um projeto paralelo de reconhecimento a outros integrantes da sociedade regional. O texto é da jornalista Vanilda Oliveira, que abraçou a causa com a paixão que os jornalistas de verdade jamais negam:  

 Terezas, Aparecidas e Marias quase anônimas do Grande ABC dividem o dia-a-dia entre crianças e idosos carentes e filas de banco para negociar o estouro na conta das entidades assistenciais que fundaram e comandam. São as Madres Terezas da região que, independentemente do credo, ajudam a remendar o rombo que a miséria e a ineficiência pública deixam no tecido social. Sem a visibilidade de um Herbert de Souza, o Betinho da campanha contra a fome, ou de uma Zilda Arns, indicada ao Nobel da Paz por seu trabalho à frente da Pastoral da Criança, em São Paulo, mulheres que não aparecem na tevê nem em colunas sociais -- e o mais perto que chegam de um evento é do sagrado bingo -- tocam abrigos, asilos, creches e fartas distribuições de alimentos. Têm nenhuma ou muito pouca ajuda oficial de órgãos públicos.  

Mais Madres Terezas   

 Nossas Madres Terezas deixam casa, filhos e até casamentos para dar amparo a crianças, idosos e deficientes carentes. Formam grupo de assistencialismo de chapéu na mão, mal documentado e à margem do Terceiro Setor e de entidades que conseguem recursos financeiros por meio de irmandades de elite, megagincanas televisivas e repasses governamentais.  Estão longe das cifras que fazem o Terceiro Setor arrecadar US$ 11 bilhões por ano no Brasil e carimbar nada menos que 13% do PIB dos Estados Unidos. A anos-luz dessa montanha de dólares, esse bloco de assistencialismo corre desorganizadamente atrás de dinheiro e verbas públicas para ganhar sobrevida. Quase sempre, porém, Nossas Madres Terezas param na burocracia e são atropeladas até por programas oficiais de combate à pobreza como o Renda Mínima, adotado em Santo André e São Bernardo.  

Mais Madres Terezas   

 Trata-se de benefício oficial na contramão do que faz a maioria das entidades assistenciais pequenas: dar o peixe, já que o pescador, à míngua, não tem barco nem anzol. Mas o que fazer até que crianças, idosos e deficientes possam aprender a pescar com a ajuda de programas governamentais embalados ao andamento de valsa? Abnegação e chapéu na mão. É o que fazem essas mulheres que sofrem como mães por seus idosos e crianças desnutridos, semianalfabetos e abandonados. Gente que chora as mazelas alheias em silêncio, mas faz barulho para ajudá-las, Nossas Madres Terezas mal têm tempo de pensar nelas próprias. E ainda acham que fazem pouco, que têm de lutar mais, amparar mais.  

Mais Madres Terezas   

 Para sobreviver, esse bloco pobre do assistencialismo regional tem de rebolar e usar quase a mesma receita da maioria sem a projeção e porte de uma Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) ou AACD (Associação de Assistência à Criança Defeituosa). Os ingredientes desse bolo de fraternidade são o bater de porta em porta, o garimpar associados. Quase sem fermento, o bolo cresce à base da máxima eternizada pelos mosqueteiros de Alexandre Dumas: um por todos e todos por um. Essas entidades sobrevivem acima de tudo do amor e da criatividade de suas fundadora-dirigentes. Sem muita opção, as Madres Terezas do Grande ABC ressuscitam jurássicas formas de arrecadação de recursos, como rifas, além de improvisar na hora da falta de dinheiro.  Fazem e entregam pizza, como a irmã Adriana Rubino, do Centro Comunitário Crianças Nossa Senhora de Guadalupe, no Jardim Laura, em São Bernardo.  

Mais Madres Terezas   

 Montam cooperativas de sócios e vendem ferro-velho, como é o caso de Terezinha Gamba Pafundi, fundadora-diretora da Casa do Caminho Ananias, de Santo André, e sobem até em árvore, se preciso for. E é. Cleide Aparecida Ardigó, fundadora e dirigente da Amare (Associação Modelo de Amor e Respeito ao Excepcional), escola que atende alunos com múltiplas deficiências em Santo André sem receber um centavo de subvenção da Prefeitura, subiu no telhado, de onde caiu em novembro passado, para evitar goteiras na cabeça das suas crianças. A ação de mulheres como Cleide, que representam todas as Madres Terezas da região, tenta suprir parte do vácuo histórico deixado pelos poderes públicos no setor de assistência social. "Abrigo para crianças é um mal necessário" -- defende a missionária da Igreja Batista Ester Vacario Bachin, de 33 anos, fundadora e diretora da Casa Monte Gerezim, no Parque Novo Oratório, em Santo André. Ela dá abrigo a 54 crianças e adolescentes numa casa de 300 metros quadrados e três banheiros, sem receber um tostão da Prefeitura.



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