Clique aqui para imprimir




Sociedade

DANIEL LIMA - 18/08/2021

Se a onda paulistana chegar, o Grande ABC vai virar um festival de estátuas a céu aberto. O lado “a” do Complexo de Gata Borralheira vai se manifestar caso a corrente histórica de copiar a pujante vizinha não vire uma zebra desta feita inoportuna. Se em São Paulo emergem cinco homenageados culturais, todos negros, no Grande ABC poderemos construir um enredo ecumênico, sem preocupação temática, cromática ou de qualquer variante. Resta saber se não vão exagerar na dose, quando remédio de reconhecimento vira veneno de oportunismo.  

Provavelmente já tem gente se movimentando para tornar ruas, praças e parques moradias de estátuas que ajudarão a contar a história dos municípios.  

Minha lista começa com Celso Daniel, como especificidade que o torna o maior entre todos. É o único que merece estar nos sete endereços municipais do Grande ABC como único exemplo de uma regionalidade na esfera pública que nasceu com ele e morreu com ele. Os demais devem ocupar espaços locais. Com todos os méritos.   

Individual e coletivo  

Não existe contradição em afirmar que o coletivamente fracassado Grande ABC é um território de muitas individualidades memoráveis, de trajetórias públicas, privadas e sociais invejáveis, e que devem servir de inspiração às novas gerações. A contradição é a constatação de que individualidade é uma coisa, coletivismo é outra.  

O municipalismo fez muita gente produtiva. O regionalismo é uma raridade na prática. Tirem Celso Daniel da estrada avaliativa e ficaremos atordoados diante do esburacamento histórico. Não há mais ninguém. Por isso somos o que somos – uma barata tonta institucional, incapaz de costurar iniciativas que se consolidem.  

Somos sete compartimentos que não se comunicam, ou fingem se comunicar, sempre tendo à frente um prefeito dos prefeitos de plantão num Clube dos Prefeitos que é muito imperfeito.  

Configuração diferente 

Estátuas no Grande ABC devem incentivar fluxo especial de iniciativas caso se considere que na Capital acabam de ser aprovados e já estão em fase de construção cinco exemplares que vão enfeitar áreas públicas. Todos os homenageados são negros. Carolina de Jesus, Itamar Assumpção, Madrinha Eunice, Geraldo Filme e Adhemar Ferreira da Silva ganharão forma concreta. 

Esses artistas foram indicados pela Secretaria de Cultura da Capital a toque de caixa, após o bafafá envolvendo a estátua de Borba Gato.  

O risco de se deixar levar pelo momento em desprezo ao contexto histórico aponta na direção de complicações no futuro para quem quer que seja o homenageado da hora.  

Do jeito que esse mundo anda para lá de Bagdá, ou do Talibã, não custa nada imaginar que o humanisticamente certo de hoje seja uma perdição a destruir amanhã. Ou seja, que as supostas virtudes de agora que negam as supostas virtudes do ontem tenham o mesmo escrutínio conceitual cíclico como incentivo à hostilidade. 

Laboratório definidor  

A falta de informações sobre o acervo de estátuas nas cidades do Grande ABC é uma barreira a disciplinar possíveis medidas de reconhecimento a personagens que ajudaram a moldar o que chamaria de realidade de que dispomos. Mas não teria força suficiente a congelar medidas importantes.  

Seriam as secretarias de Cultura laboratórios definidores à aprovação de novos homenageados, como o caso da Capital?  

A centralização impulsionaria definições estritamente segmentadas quando se sabe que uma sociedade de verdade é mais que isso, é um ajuntamento mesmo que municipalista que foge da tematização.  

Além disso, o raciocínio politicamente correto de que negros artistas deveriam ser priorizados, poderia se encaixar num pensamento tribal, de guetos, tanto quanto os motivos que os encarceram socialmente?  

Ordem das coisas  

Tenho uma batelada de indagações que, acredito, contribuíram para tornar homenagens em forma de estátuas uma corrida sem atropelos, exceto, claro, quando o futuro distante não está em xeque, porque o futuro distante ultrapassa os limites da sensibilidade e da premonição. Vira fundamentalismo.  

Quem garante que os negros homenageados hoje não serão os Borba Gatos de uma minoria recalcitrante amanhã?  

Ou, vejam só, que o municipalismo na região seja tão estúpido quanto improdutivo a ponto de, mais rigorosamente determinado no futuro, transformar Celso Daniel em inimigo comum? 

Pensando bem, já nestes dias como nos dias passados não faltam ignorantes a condenar o regionalismo na esfera pública e na mídia. São municipalistas empedernidos.  

Imperialismo mesmo?  

O mundo está virado de ponta-cabeça a ponto de os norte-americanos agora ganharem torcida organizada nacional quando, no passado não muito distante, eram unanimidade ou quase isso de imperialismo a ser combatido. Agora temos sucursais nacionais de Republicanos e Democratas. O imperialismo ganhou nova roupagem. Estariam certas ontem ou estão certas hoje as divisões de artilharia ideológico-partidária em que nos transformamos?  

Temo também pela profusão pouco qualificadora de homenageados das estátuas que povoariam locais públicos do Grande ABC. Temo que se repita no âmbito da materialidade física a enxurrada de canudos de papelão de títulos de cidadania que os municípios entregam a cada temporada.  

Gente que jamais frequentou a região ou que pouco fez pela região no sentido estrito de municipalismo vira imortal. Tudo ajeitado em balcões de negócios de reciprocidades de ocasião. Aprova-se aqui condicionando-se a aprovação ali.  

Tenho certeza de que desse troca-troca não participei. Sou Cidadão de Santo André por obra de gente maluca que confundiu obrigação com mérito. Convém ressaltar que também não participei e não participo de outros troca-trocas. Nada contra quem pratica. Exceto se a prática for a dano da sociedade. Tenho certeza de que o leitor pensou outra coisa.  

Pelé homenageado?  

Estou desconfiado de que homenagens em forma de estátuas já estão na linha de tiro de forças políticas municipais. De repente já se fala em homenagear Pelé por ter marcado o primeiro gol da carreira mais brilhante da história do futebol no Estádio Americo Guazzelli, do Corintinha da Vila Alzira, em Santo André. 

Trata-se de um quebra-galho aceitável. Seria mil vezes preferível que no passado o oportunismo e o descalabro não fossem parceiros na destruição do gramado e das arquibancadas. Que ali vicejasse um museu que, todos sabem, é mais que estátua.  

Deixo a sugestão a estudos de nomes que poderiam virar estátuas na região. Criamos como categoria do Prêmio Desempenho, evento que realizamos durante 15 anos no Grande ABC, a categoria de Imortais. São mais de 200 premiados. Todos passaram pelo corredor polonês crítico de até duas centenas de conselheiros editoriais da revista LivreMercado. Imortais vivos e Imortais mortos.  

Corredor seletivo  

Aqueles homenageados passaram pela corrida de espermatozoide em forma de análise dos conselheiros. Mais de 1.200 nomes foram encaminhados à votação durante várias edições. Muitos foram barrados pelo filtro classificatório dos conselheiros editoriais da publicação. Gente que representava formadores e tomadores de decisões.   

Na minha lista de transposição de Imortais para Estátuas constam vários deles quando recorro rapidamente à memória. São muitos empreendedores nas áreas social, empresarial, cultural e esportiva. Gente da melhor qualidade. Gente que prova o quanto somos incompetentes em gerar um regionalismo muito melhor do que está aí.  

Gente como Samuel Klein, Jairo Livolis, Abraham Krasinski, Itiro Irano, Laís Helena Aranha e tantos outros que já se foram. E muita gente que continua por aqui. Vivos e ativos. E que teriam de esperar até que a hora fatal chegue. Estátua de gente viva não pega bem. Uma lista pública de espera também soaria mal. Daria a impressão de que se pretende homenagear logo.  

Individualidades importam  

Botar essa turma de imortais mortos em praças, parques e avenidas, com as respectivas identificações, comporia arquitetura cultural no sentido mais amplo da expressão.  

O Grande ABC precisa resplandecer as individualidades que o compuseram e o compõem como uma das medidas a evitar o que se tem verificado de forma preocupante, expressa sobretudo nas redes sociais: a cada dia que passa perdemos a identicidade como Território diferenciado no País.  

Um território no qual se discutem cada vez mais temas nacionais e estaduais em detrimento da focalização em questões locais e regionais, entregues à sanha de malfeitores que se sentem intocáveis.  

Estátuas, como se vê, teriam poder potencial de mobilização que, em contraste e surpreendentemente, a cacofonia das redes sociais e os interesses da mídia convencional sufocam, quando não asfixiam.  



IMPRIMIR