O dinamismo da indústria da região do ABC, na Grande São Paulo, manteve-se intacto nos anos 90. Pesquisa inédita da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC mostra que o chamado esvaziamento industrial da região não ocorreu. A participação da indústria local no valor adicionado fiscal do Estado de São Paulo manteve-se na média histórica de 15% ao longo da década.
João Batista Pamplona, economista, coordenador de pesquisa da Agência e um dos autores do trabalho, afirma que ocorreu uma reestruturação da indústria local. Ele admite que a produção física possa ter diminuído, mas o valor da produção permaneceu no mínimo igual. “As indústrias do ABC sofreram um processo intenso de modernização e o custo disso foi o emprego”, diz. O estudo mostra que mais de 100 mil vagas foram fechadas na região ao longo da década passada.
A tese do economista é que as empresas locais foram forçadas à modernização a partir da abertura da economia, no início dos anos 90. Ao mesmo tempo, enfrentaram a sobrevalorização dos primeiros anos do real. A moeda fortalecida artificialmente derrubou as exportações, mas facilitou parte do processo de modernização, via importação de máquinas. O ABC passou a produzir itens de maior valor adicionado com uso mais intenso de tecnologia e menor de mão-de-obra. Isso ajudou a manter sua participação proporcional no bolo da economia paulista, ainda que a produção oscilasse ao sabor da expansão ou contração da economia.
A pesquisa chegou também a um dado surpreendente: a saída de algumas fábricas ou linhas de produção entre 1990 e 1996 foi compensada pela chegada à região de novas unidades fabris. E praticamente na mesma proporção. “O estudo conclui que não houve perda líquida de atividade industrial” — disse Pamplona.
Pamplona chama a atenção para o fato de que o chamado “conflito trabalhista” — a existência de sindicatos atuantes — praticamente não influenciou a decisão da maioria das empresas de abandonar a região. Apesar do maior custo de mão-de-obra, o ABC ainda tem os profissionais mais bem treinados e a melhor produtividade em determinados setores, avalia.
A um custo de cem mil empregos perdidos, as indústrias do ABC reestruturaram suas linhas de produção em ritmo mais acelerado que em qualquer outra região do Estado de São Paulo durante a década de 1990. A informação consta de uma pesquisa divulgada ontem pela Fundação Estadual de Análise de Dados e Estatísticas (Seade) e pela Agência de Desenvolvimento Econômico do ABC. Para a fundação, os números derrubam a tese de que as indústrias do ABC fugiram em massa da região nos anos 90.
Com informações de 1996, mas tabuladas somente neste ano, o estudo revela que 1,1% de todas as indústrias do ABC receberam novas linhas de produção entre 1994 e 1996. Embora baixo, o índice refere-se a um universo de empresas em geral de grande porte, responsáveis por 22,7% de todo o valor adicionado fiscal gerado pela indústria do ABC. Valor adicionado é a diferença entre o valor de venda de um produto menos seu custo de produção (exceto mão-de-obra). Na cidade de São Paulo, o índice de fábricas que declararam ter recebido novas linhas de produção no mesmo período foi de 0,7%, e no Interior paulista, 0,9% (a média do Estado é de 0,8%). “Por ter se modernizado muito, a indústria do ABC está apta a crescer com fatores macroeconômicos mais favoráveis”, afirma o coordenador de pesquisas da Agência do ABC, João Pamplona. No caminho inverso, houve empate: 1% das indústrias do ABC transferiram linhas de produção para outras regiões entre 1994 e 1996. Na Capital, o índice de transferência ficou em 0,7%.
Entre 1985 e 1999, segundo dados da Fazenda estadual, a participação das indústrias do ABC sobre o valor adicionado fiscal da indústria paulista oscilou entre 13,71% e 17,16% mas, na média, foi de 15% ao longo de todo o período: “O mito da desindustrialização do ABC foi construído em torno da perda de empregos industriais, e não com base na geração de riquezas dessa indústria”, diz a pesquisadora Maria de Fátima Araújo, do Seade.
Seguramente, as declarações de João Batista Pamplona à frente da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC são antológicos atentados ao pudor informativo. Causou tanta estupefação o arrazoado supostamente científico do representante da Agência, mais tarde demitido da instituição, que a revista LIVRE MERCADO de outubro de 2001, isto é, no mês imediatamente seguinte às declarações do economista, transformou em Reportagem de Capa sob o título “Chega de evasão” o que pode ser chamado como um ponto final nas ondas de ufanismo pouco responsável sobre a realidade do Grande ABC.
O jornalista André Marcel de Lima, de LIVRE MERCADO, conseguiu feito inédito ao quantificar junto a uma das principais consultorias imobiliárias — a paulistana Bamberg — o tamanho do rombo físico da desindustrialização do Grande ABC. A Bamberg contabilizava 2,5 milhões de metros quadrados de espaços ociosos numa região que João Batista Pamplona dizia estar imune à devastação industrial. Eram galpões abandonados e terrenos virgens ou desocupados. Desse total, 400 mil metros quadrados eram de 40 indústrias de médio porte em atividade, mas que se preparavam para bater asas por mais competitividade.
O balanço da Bamberg em outubro de 2001 foi espécie de abertura de uma fresta de constatações mais desagradáveis. Afinal, envolvia praticamente apenas empreendimentos de médio porte, cujos dirigentes recorrem com mais frequência a empresas de consultoria imobiliária mais renomada. Imaginem o que não ocorreu com micros e pequenos negócios!
É importante contextualizar no tempo a Reportagem de Capa da revista criada há 13 anos. Afinal, a publicação foi pioneira ao alertar sobre o esvaziamento econômico do Grande ABC já no começo dos anos 90. Por isso, a manipulação estatística que teve o economista João Batista Pamplona como arauto máximo jamais ganharia as manchetes de jornais — e na sequência a pauta da mídia eletrônica — com tamanha impunidade.
O que o representante da Agência preparou de alquimia com os dados da Fundação Seade é uma fórmula useira e vezeira de quem formata o tempo como ingrediente de prestidigitação. Basicamente, Pamplona generalizou para todos os anos 90 uma situação de excepcionalidade que o Grande ABC viveu nos anos de 1994 a 1996, período da pesquisa.
A febre consumista deflagrada com o Plano Real e que abarcou exatamente o período da pesquisa foi expandida tanto para os anos anteriores como para os anos posteriores de fundos problemas econômicos no Grande ABC. Trocando em miúdos: Pamplona usou como regra geral da década de 90 os três anos em que o artificialismo do Plano Real disseminou o crescimento da indústria automotiva, carro-chefe da economia regional. Enfim, trocou a exceção pela regra.
A chegada de novas montadoras de veículos no período posterior à pesquisa e as consequências da descentralização da produção, além das escorregadelas do Plano Real, não foram contabilizadas pelo economista quando reuniu a Imprensa em setembro de 2001. Ele vendeu para a mídia um carro usado a preço de novo. E o pior é que toda a mídia impressa diária foi enrolada.
Além disso, os dados mencionados por João Batista Pamplona sobre o histórico do Valor Adicionado estão incorretos. Primeiro, não houve no período supostamente analisado a uniformidade média declarada. Segundo, documentos oficiais da Secretaria da Fazenda do Estado dinamitam os números relacionados pelo pesquisador. A especificidade de Valor Adicionado Fiscal não existe para efeitos estatísticos oficiais e muito menos conceituais. Qualquer passeio que se faça no site da Secretaria da Fazenda do Estado detectará Valor Adicionado como indicador de transformação industrial sobre o qual se define a distribuição do ICMS aos municípios. Não existe Valor Adicionado Fiscal como medidor.
O descasamento temporal entre o período da pesquisa e o comportamento da economia do Grande ABC durante a década de 90 pode ser resumido e liquidar com eventual sobra de credibilidade dos estudos de João Batista Pamplona diante da constatação da debacle da região no governo Fernando Henrique Cardoso. Mesmo sem considerar o último ano de FHC, 2002, o Grande ABC perdeu em termos absolutos, deflacionados os valores, 34% do Valor Adicionado registrado em 1994. Um resultado sem paralelo na economia paulista.
Isso quer dizer que enquanto o pesquisador João Batista Pamplona desfilava números perdidos no tempo da dinâmica econômica, o Grande ABC vivia fase de estrangulamento. Já no ano anterior este jornalista expunha a face enrugada de uma região outrora viçosa. Entre 1980 e 2000 o Grande ABC registrava a perda de praticamente um terço (32,7%) de participação no Valor Adicionado do Estado. A região contava com 13,89% de participação na produção de riqueza e impostos em 1980, contra 9,35% no ano 2000. Em reais, isso significava, em dezembro de 2000, que a região deixou de gerar R$ 10,4 bilhões: os R$ 21,2 bilhões deveriam chegar a R$ 31,6 bilhões se a participação no bolo paulista se mantivesse em 13,89%.
Como se explica o uso da máquina estatística de uma instituição importante como a Fundação Seade para generalizar o comportamento circunstancial da economia do Grande ABC? Triunfalismo, triunfalismo e triunfalismo. O Grande ABC viveu coincidentemente no período mais destrutivo de sua história — os anos de Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República — a etapa mais comprometedora de relacionamentos entre fontes de informação e mídia permissiva. O pacto entre governos municipais e formadores de opinião versava sobre a importância de pintar de azul tudo que fosse ameaçadoramente vermelho. Como se comemorar o aniversário fosse a melhor saída para esconder o tumor que abatia um enfermo.
O despudor com que João Batista Pamplona agiu durante praticamente três anos não foi gesto isolado e insano de quem ostentava títulos universitários tão diversos quanto respeitáveis. O pesquisador fazia parte de uma engrenagem de louvação que caprichosamente misturava estatística e marketing. O abre-alas de seus títulos universitários conferia às fantasias numéricas ares de realidade. Mesmo que a realidade dos números conflitasse com as evidências e contraprovas estatísticas. A deterioração da qualidade de vida no Grande ABC nocauteava os ilusionismos estatísticos.
Embora dispusesse de um banco de dados importante, algo até então inexistente no Grande ABC, a Agência de Desenvolvimento Econômico cometeu o erro crasso de entregar a interpretação das estatísticas a um forasteiro orientado para sufocar a realidade em nome de um marketing supostamente positivista. Foram muitas as trapalhadas analíticas de João Pamplona. Uma das quais a afirmativa de que o sindicalismo não influenciou nas decisões de retirada das empresas da região.
A base de interpretação de Pamplona é canhestra: a pesquisa não ouviu os empreendedores que se afastaram do Grande ABC nem aqueles que desapareceram do mapa de produção, mas apenas parcelas de quem permaneceu na região. Algo semelhante a procurar depoimentos sobre experiências de sobrevivência entre quem permaneceu no navio em chamas rapidamente controladas e não entre quem se precipitou ao mar. Nem mesmo o mais empedernido sindicalista deixa de reconhecer que os anos 80 foram de chumbo grosso nas relações entre capital e trabalho no Grande ABC. Bem diferente da placidez dos anos 90, a bordo de empregos em baixa e produtividade em alta.
Nem mesmo se o pesquisador da Agência deixasse de virtualizar os números a economia do Grande ABC estaria a salvo de queda. Estudos do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) diagnosticaram que no período de 1985 a 2000 a participação relativa nacional da indústria de transformação paulista caiu de 51,58% para 42,05%. Uma derrapada de 18,47% ou de 9,53 pontos percentuais. Considerando-se que o impacto só não foi maior porque o Interior paulista absorveu grande parte das indústrias que deixaram a Região Metropolitana de São Paulo no período, é fácil compreender a tolice da interpretação da pesquisa da Fundação Seade.