A indústria brasileira está mais competitiva e mais forte, após um longo período de ajuste entre 1985 e 1999. Essa é a opinião do chefe do Departamento de Indústrias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Sílvio Salles, ao comentar os resultados da Pesquisa Industrial Anual referente a 1999, divulgada ontem pelo órgão. Ele atribui o fato ao processo de abertura da economia à concorrência internacional iniciada nos anos 90. “Há muita discussão se a abertura deveria ser rápida e sem programação ou se deveria buscar alguma forma de ordenar o processo. O fato hoje é que o setor conseguiu se adaptar e se fortaleceu”, disse.
A pesquisa do IBGE mostrou que a indústria está vendendo mais, empregando menos e reduzindo o peso da folha salarial nos custos totais. Outro dado relevante é que no período de 14 anos houve aumento de 21% no número de empresas industriais, que totalizavam 117.838 unidades no fim de 1999. O pessoal ocupado caiu 8,8% e somava 5,003 milhões de trabalhadores, com queda de 480 mil postos em relação a 1985.
Entre 1985 e 1999, a indústria brasileira ficou menor, com a média de pessoal ocupado por empresa caindo para 42,5 funcionários, o que representa decréscimo de 25%. Em 1999 as grandes empresas respondiam por 36,8% do pessoal ocupado, contra 25,4% das médias e 37,8% das pequenas. Em 1985 essas participações eram de 48,3%, 25,1% e 26,7%.
É praxe entre economistas enxergar apenas algarismos e, insensivelmente, destrinchá-los à revelia do quadro socioeconômico. Trata-se de tradição que pesquisadores encastelados no poder manobram com a competência de sempre e a contrapartida da omissão editorial também de sempre. Bastaria um trabalho complementar de redação, acrescentando dados sistêmicos ao emaranhado de números do IBGE, para oferecer um contraponto ao tecnicismo da instituição federal de pesquisas.
O IBGE de guetos de estudos que invariavelmente não se cruzam oferece à mídia desorganizada e despreparada menus de todas as espécies. Quando confrontados, esses menus paradoxalmente se anulam e se completam. Um exemplo é que poucos meses depois do anúncio de que a indústria brasileira estava nadando de braçadas, o próprio IBGE, em janeiro de 2002, divulgava em entrevista coletiva que o setor produtivo foi o mais duramente atingido pelas transformações econômicas. Perdeu 27,8% de pessoas ocupadas entre 1991 e 2001 — portanto, num período inferior ao anteriormente proclamado como fortalecedor da indústria.
A queda da qualidade do emprego industrial nem de longe passou pela preocupação do anúncio do economista do IBGE em outubro de 2001. Interessava-lhe apenas a banda da suposta eficiência empresarial.
Entre 1991 e 2001, reflexo da descomunal abertura econômica do País sem a trava de segurança de contrapartidas comuns entre países do Primeiro Mundo, os empregos com carteira assinada caíram de 79,49% para 66,50%, ou seja, 16,3%. O trabalhador por conta própria dentro da população ocupada, que cresceu de 20,1% em 1991 para 23,1% em 2001, mais que dobrou na indústria, segundo o IBGE, pois passou de 4,1% para 9,57% entre 1991 e 2001. O emprego sem carteira assinada na indústria também avançou demais no período, passando de 11,58% do pessoal ocupado para 18,52%, um crescimento de 60%.
Todos esses números colocam em xeque a política de abertura econômica do Brasil, se assim pode ser chamada a aventura de jogar para escanteio todos os ensinamentos da literatura de competitividade entre as nações. Entre outras lições, o manual do bom comportamento industrial recomenda que o rebaixamento de alíquotas não é uma brincadeira de parque de diversões. Não é atirar setas num alvo qualquer sem se preocupar com as consequências que tanto podem ser perda de uns trocados como a conquista de um souvenir geralmente inútil.
Abrir intempestivamente as porteiras às importações e ao capital internacional sem avaliar as repercussões sociais não é algo que possa ser batizado como política de fortalecimento industrial.
Dias antes da divulgação dessa nova pesquisa do IBGE, que sufoca os estudos anteriores de grandiosidade desenvolvimentista, a consultoria norte-americana Towers Perrim veio a público para anunciar levantamento em 26 países com empresas que registravam faturamento anual acima de US$ 500 milhões. Uma das conclusões: a contração econômica mundial arrastou o salário de operários de chão de fábrica a níveis baixíssimos, com quedas de até 25% na renda trabalhistas em alguns países, mas em nada alterou o holerite de presidentes e diretores de multinacionais. O fato foi constatado no Brasil e em países como China, Japão e França. O levantamento da consultoria norte-americana mostra que operários da linha de produção de 18 países, entre os 26 analisados pelo estudo, perderam até um quarto da remuneração.
A pesquisa estritamente numérica anunciada pelo IBGE ao final de 2001 igualmente não faz qualquer referência à guerra fiscal. Um buraco sem tamanho, considerando-se que a descentralização industrial do País entre 1985 e 2000 — portanto, o mesmo período da pesquisa do IBGE — provocou forte migração de empregos. De novo, os dados são do IBGE: a busca por menores custos levou indústrias intensivas em mão-de-obra a deixarem a Região Sudeste, que perdeu 8,8 pontos percentuais (caindo de 66% para 57,2%) de participação no número de ocupados no período. A queda foi superior à fatia da região no valor total produzido no Brasil, de 71,2% para 66,1%, ou cinco pontos percentuais.
Outra deficiência na notícia de suposto fortalecimento da indústria nacional é o tratamento tópico e universalizado dos números, desconsiderando-se as nuances de cada Estado e também setoriais. Ao espalhar sob um mesmo plano o comportamento da indústria nacional, o IBGE incorreu na generalização, inimiga número um do específico, que por sua vez é aliado preferencial da compreensão.
A definição conceitual de que a indústria nacional se fortaleceu no período analisado pelo IBGE, com base nos dados apresentados, é extremamente perigosa e indutiva de interpretações caolhas. Recente estudo do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior sobre a situação competitiva das 20 principais cadeias industriais brasileiras e os impactos a que estão sujeitas nos acordos com União Européia e Alca revela que o mar não está para peixe, como tentou fazer crer o IBGE.
Segundo o documento, o eventual fechamento de acordos para formação da Alca ou liberalização comercial com a União Européia implica no que os pesquisadores denominam de quatro agrupamentos de ameaça. Dezessete das 20 cadeias produtivas equivalem a 53% do faturamento da indústria brasileira, 63% das exportações e 67% das importações. Essa elite empresarial cresceu em média 3,8% ao ano — num processo de expansão da desnacionalização com a participação do capital estrangeiro no faturamento — e saltou de 35,86% para 51,76% entre 1996 e 2000. De 18 cadeias produtivas (saúde e tecnologia foram excluídas), 10 tiveram balança comercial deficitária entre 1996 e 2001 na soma geral dos negócios com a União Européia, num saldo negativo total de US$ 32,9 bilhões, descontado o superávit das demais cadeias produtivas.
O calhamaço de mais de mil páginas das 20 cadeias industriais separa as atividades em quatro grupos: empresas que sofreriam menores ameaças com a liberalização comercial, as com sérias deficiências competitivas e que são cronicamente deficitárias, as em que as oportunidades de negócios e as ameaças seriam localizadas ou se anulariam e, finalmente, as empresas com forte participação na chamada corrente de comércio. Neste último grupo a maioria é deficitária, mas predomina o comércio entre as próprias empresas, intrafirma, como é o caso da indústria automotiva.