Clique aqui para imprimir




Nosso Século XXI (2ª Ed.)

LEVI CORREA DE ARAUJO - 16/09/2008

“O dinheiro tem suas restrições. Não compra o sucesso intrínseco de que carecem certos lugares das cidades, nos quais o uso do próprio dinheiro não consegue propiciá-lo. Além do mais, o dinheiro provoca prejuízos irreparáveis por destruir as condições necessárias para o sucesso intrínseco. Por outro lado, por ajudar a obter os requisitos imprescindíveis, pode contribuir para o surgimento intrínseco do sucesso nas cidades. Na verdade, ele é indispensável. Por esses motivos, o dinheiro tem o poder de contribuir tanto para a decadência quanto para a revitalização das cidades. Porém é preciso entender que o mais importante não é a simples disponibilidade de dinheiro, mas sim como se torna disponível e para quê. (…) Pelo fato de o dinheiro ser tão poderoso como instrumento, quando ele some, as cidades também somem.”Jane Jacobs, em Morte e Vida de Grandes Cidades.

O hoje dos atores sociais pragmáticos e imediatistas seria divino se não existissem os problemas comuns do ontem e os sinais caóticos do amanhã, pois o que há de pior, seja herdado ou possível, é o que poderá nos unir.

Começamos a compreender que a qualidade de vida em nossas cidades não depende somente da produtividade e competitividade econômica. Estamos aprendendo pesarosamente que o desenvolvimento deve ser humano, integrando o econômico, o social e o ambiental. O fato é que não teremos a vida com que sonhamos se as cidades não forem ambientalmente sustentáveis, inclusivas social e politicamente, tendo em todos os habitantes os vitais sentimentos de pertencimento e identificação cultural.

A declaração de visão do Projeto Cidade Futuro — Agenda do Milênio, que é o planejamento estratégico e participativo a médio e longo prazo de Santo André, reza que desejamos ser “uma cidade integrada e planejada, com desenvolvimento sustentável e justiça social”. Nesse contexto é que o conceito e a implementação do planejamento democrático das cidades vão além de ser meras ferramentas administrativas.

Sendo ou não estratégico, situacional, orientado, automatizado, urbano…, enfim, do planejamento clássico ao familiar, o que precisamos de fato é criar ambientes onde as pessoas possam perceber a realidade, considerando os caminhos e jornadas e edificando um cenário coletivo aprazível e possível para todos. Portanto, se desejamos um desenvolvimento realista e objetivo em nossa sociedade, precisamos resistir à endêmica ausência de uma cultura de planejamento nas pessoas e instituições.

Com autonomia e liberdade, esses novos sujeitos e atores sonham em poder decidir os destinos da cidade fazendo jus aos mais altos ideais democráticos e certos de que sempre haverá uma bendita expectativa capaz de nos conduzir em direção oposta àqueles ensimesmados que não passam de massa acrítica e alienada. Estamos falando de novos cidadãos que tenham capacidade de produzir, a partir de seus interesses, um interesse maior.

Segundo Cícero, na virtude — virtus — o homem atinge seu mais alto nível de excelência quando age ao lado do outro com vistas à realização do bem comum. Segundo Maquiavel, bem comum é a construção de uma ordem que evite o caos e a anarquia. O desenvolvimento humano de nossas cidades virá de um convergir virtuoso de mentalidades e esforços conjuntos na construção de políticas públicas.

Os cidadãos do Grande ABC devem buscar parcerias entre os atores que possuem sensibilidade e atenção para distinguir entre as forças que perpetuam a decadência e o retrocesso e as forças que preconizam a recuperação da economia regional e dos espaços urbanos priorizando pessoas, e não o mercado. Parcerias de cidadania que creiam que todos os espaços da cidade em revitalização devem privilegiar o cidadão. Pessoas sensíveis que pensem na vitalidade econômica e social das cidades a partir de calçadas e sarjetas para todos os pés — sejam pés calçados com grifes ou desnudos e palmilhados por dignidade.

O prefeito Celso Daniel disse que “podemos planejar uma cidade agradável e sonhar com ela”. Precisamos de cidades agradáveis. E cidade para ser agradável tem de ser um todo conexo que agrade ao todo de todos os seus cidadãos. Em nosso torrão do Grande ABC há muita gente, e gente boa de todo gênero e gênio.

Gente que é quase sempre mais gente do que todos os inteligentes formadores de mentes. Gente que são pessoas, e pessoas que mudam e promovem mudanças, apesar de os impiedosos índices desiguais de desenvolvimento humano de nossa região e do abandono dos princípios que sempre nortearam o nascedouro das nossas vanguardistas instituições regionais.

Temos de reduzir a “prefeiturização”,
em que grupos mantêm guetos sem
programar benefícios para toda a região

Não há como pensar o futuro da nossa cidade sem expandir a reflexão para o âmbito regional e metropolitano. Uma necessária conexão institucional entre nossos municípios ajudará a diminuir o estilo de administração marcado pela prefeiturização, em que variados grupos fazem da dinâmica político-partidária um instrumento para tomar ou manter o poder dos guetos sem programar políticas que beneficiem todas as cidades e façam com que nossa úbere região volte a prosperar com dignidade e segurança a todos.

Assim seremos autores do nosso destino comum, construtores das instituições e realizadores da ordem social. O que vemos hoje é um triste e alienante abdicar do nobre legado humanista e solidário e das coisas dos nossos ambientes comuns.

Fernando Pessoa, ao falar sobre o provincianismo, retrata com exatidão o cenário dos desertores dos ideários humanistas que devemos evitar. Assim disse o poeta: “O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte do desenvolvimento superior dela, em segui-la, pois, mimeticamente com uma insubordinação inconsciente e feliz”.

Essa insubordinação inconsciente e feliz me faz lembrar da música Admirável gado novo, que nos transporta criticamente para uma vida de gado onde o povo é marcado e feliz. Essa felicidade doentia e que adoece nos leva ao status de seres normóticos. A normose dos cidadãos nos leva a um catatonismo social que por sua vez produz um marasmo perigoso no campo da atuação cidadã.

Pierre Weil considera como normose “…o conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir aprovados por um consenso ou pela maioria de determinada população e que levam a sofrimentos, doenças ou mortes, em outras palavras, que são patogênicas ou letais, e são executados sem que seus atores tenham consciência dessa natureza patológica, isto é, são de natureza inconsciente”.

O problema agrava-se mais ainda quando esse tipo de ética anticidadã é reforçada por alguns importantes atores formadores
de opinião, com ou sem responsabilidades constitucionais, absortos em projetos pessoais e corporativistas. Na verdade, esses estelionatários da cidadania nada ou pouco fazem para mudar “o conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir aprovados por um consenso ou pela maioria” que são nocivos à saúde dos cidadãos. Pior, os estelionatários da cidadania terminam usando dos mesmos expedientes para se perpetuarem no poder e em seus guetos de celebridades.

Não estaria o nosso ativismo cidadão precisando de um divã ou de um prozac para um tratamento longo e bem feito até que uma metanóia sana nos faça trocar os otimismos das anfetaminas mal receitadas por uma esperança consistente de mentes e corações autônomos e protagonistas que seguirão atuando no presente sem medo do futuro?

Sem um auscultar e um olhar novo e esperançoso, só nos restará a apatia dos seres sem paixão, nos quais a coisa-minha está infinitamente acima da coisa pública. Esse nosso hedonismo ególatra nos afastará da verdadeira ética que, como diz Umberto Eco, depende da presença do outro para que exista. O que predomina é o sentimento de que a política é coisa para profissionais e a nós, pobres cidadãos, restam as obrigações de pagar impostos exorbitantes e eleger governantes.

Impassíveis, nós não conseguimos — nem desejamos — pensar em exercer cidadania de fato e de direito antes, durante e depois dos pleitos eleitorais. Esse danoso senso comum é alimentado pelas lupas de uma mídia ávida por escândalos, que reforça a sensação de que nada irá mudar. Com isso, terminamos assumindo uma indolência política. Assim, o desinteresse pela coisa comum termina impedindo o surgimento de novos quadros técnicos e políticos.

Como diz nossa poeta maior de Santo André, Dalila Teles Veras, precisamos auscultar a cidade. Precisamos de novos espaços — ou de mudar os auscultadores dos espaços existentes –, onde o coração e a voz do cidadão sejam ouvidos e o sentimento de pertencimento à cidade e à comunidade seja mensurado.

Além de um novo ouvir, carecemos de um novo olhar, uma cultura do olhar cidadão, um saber que dialogue com todos os olhares da nossa complexa e rica rede de atores sociais. Uma convivência disposta não só a ouvir, mas a olhar e entender as histórias e valores das pessoas, dos grupos e movimentos sociais que interagem em nossa praça comum.

A redenção plena está em um novo jeito de ver as pessoas e cidades, um olhar que busque a identificação e a encarnação do outro e no outro. Olhares mais respeitosos e inclusivos, olhares menos individualistas que reflitam a busca perseverante de horizontes ideais em mirantes mais nobres. Este ensaio à visão revelará algumas cegueiras pessoais, institucionais e sociais e nos fará rever algumas coisas e confirmar outras em nossa busca comum do bem coletivo.

A cura de nossa surdez e cegueira cidadã nos levará à rebelião necessária contra essa normose e apatia que grassam em nossa região. Insurreição que nos levará a uma nova cultura política definidora de uma dinâmica saudável para a ação protagonista do cidadão no pensar e fazer política nas cidades e na participação direta dos processos de disputa e ocupação dos espaços de poder.

A Constituição Cidadã de 1988 trouxe como prerrogativas de um estado democrático de direito a exigência do controle social do Estado e o orçamento participativo. Plebiscito e iniciativa popular são mecanismos constitucionais que viabilizam a participação da comunidade na gestão das políticas públicas.

Há anos Santo André experimenta o planejamento democrático participativo a curto, médio e longo prazo por meio de Orçamento Participativo, Projeto Cidade Futuro e 22 Conselhos Municipais (consultivos ou deliberativos, paritários ou não). Digno de destaque é o Plano Diretor Participativo e a atuação do Conselho Municipal de Políticas Urbanas de Santo André, que em seu processo de elaboração e consolidação sacramentou o disposto no Estatuto das Cidades e na Constituição Federal.

Valho-me de uma das máximas da Reforma Protestante — Igreja reformada sempre reformando — para afirmar que não podemos recuar na consolidação dos instrumentos constitucionais de controle social do Estado. Na Revista Santo André Cidade Futuro — Agenda do Milênio, lançada em agosto de 2007 pelo governo municipal, podemos encontrar as seguintes afirmações sobre a relação que há entre governança democrática e participação cidadã:

“A participação cidadã como exercício de cidadania é um fato relevante do desenvolvimento humano e permite definir as responsabilidades e compromissos que todos devemos assumir como parte constituinte de um coletivo social. (…) É por isso que a gestão participativa e o desenvolvimento das capacidades sociais, com direitos e deveres definidos, constituem as bases para que alcancemos um novo patamar de desenvolvimento humano, construído a partir de práticas solidárias e coletivas, que superem a deterioração dos direitos sociais, econômicos, culturais e políticos. (…) Em Santo André, a participação cidadã configura-se como instrumento de organização e conscientização, capacitando as pessoas para serem agentes de transformação social, intervindo nos espaços em que se exercita a cidadania e o controle social”.

Sem algumas garantias e inovações, perderemos o rico acúmulo da nossa cultura participativa da última década e meia, especialmente em Santo André e Diadema.

Como impedir que um prefeito acabe
ou desqualifique instrumentos sociais
que monitoram e avaliam seu governo?

Como garantir o caráter permanente e a institucionalização de órgãos colegiados deliberativos, representativos da sociedade? Como impedir que um novo prefeito queira lançar sua marca e estilo de governar desqualificando, desmobilizando ou simplesmente acabando com instrumentos constitucionais que garantem o direito de a sociedade civil planejar, monitorar, acompanhar e avaliar os resultados das políticas públicas?

Devemos admitir que a previsibilidade e a monotonia na condução de alguns conselhos e fóruns começam a desgastar esses importantes espaços públicos de articulação entre governo e sociedade. Daí a necessidade de inovar os métodos de auscultar e melhorar os instrumentos de regulação, a fim de impedir cooptações ou induções que transformem os participantes em inocentes úteis ou meros demandadores.

Eis nosso grande desafio: inovar estrutural e institucionalmente nesses espaços, avançando na construção de um decidir compartilhado dos rumos públicos pelos cidadãos que, revestidos de capacidade interna de dar a si mesmo o próprio caminho, jamais aceitaram escolher a partir das propostas alheias.

Como em tudo que existe no padrão democrático, não são poucas as dificuldades e fragilidades que esse modelo de governança tem. Devemos avançar conscientizados de que um governo ou instituição não pode existir sem essas Ágoras da sociedade civil, sem os olhares e saberes multiformes dos cidadãos. Os espaços de participação cidadã são imprescindíveis para toda gestão que pretende ser legitimada e confiável.

Portanto, a consolidação desse princípio constitucional é tarefa para a rede de atores sociais que interagem em nossas cidades. As diversas instâncias dos poderes executivos, legislativos e judiciários, além de organizações não-governamentais, entidades representativas de classe profissional, trabalhadores, instituições de ensino, centros de pesquisa e movimentos populares, devem ser co-responsáveis por esse pacto cidadão e pela busca diligente de uma cultura de participação cidadã.



IMPRIMIR