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Alô, Juca Kfouri: jogar contra
10 pode sim ser muito pior

  DANIEL LIMA - 18/08/2022

Por razões que vão explicitamente muito além das quatro linhas do gramado, o jornalista Juca Kfouri produziu na Folha de S. Paulo de hoje uma crítica recheada de imprecisões, além ou sobremodo ao descredenciamento do técnico Cuca, do Atlético Mineiro.  

Tudo por conta do jogo da Libertadores da América, recentemente disputado em São Paulo.  

Sugiro aos leitores que sigam com essa leitura porque não vou me ater exclusivamente ao campo esportivo. Até porque, o texto de Juca Kfouri está longe disso. Como vou provar. 

O Atlético perdeu na cobrança de penalidades máximas, após empate de zero a zero no tempo regulamentar.  

DIREITO E RISCO  

Durante 60 minutos o time palmeirense jogou com um atleta a menos. E nos últimos 15 minutos (tumultuados e sem fluxo de jogadas) com um novo desfalque.  

Juca Kfouri é um de três dezenas de colunistas de jornais e revistas que acompanho com assiduidade.  

São jornalistas e colaboradores de todas as áreas. Do Cinema ao campo da Saúde, da Economia e do Comportamento. Da Política aos Negócios. Sou um devorador de colunismo autoral.  

É um direito sagrado de Juca Kfouri (e também de Casagrande, agora colunista de Folha de S. Paulo) , assim como de outros profissionais,  invadir a grande área esportiva com manobras ideológicas e partidárias. Cada um que assuma a responsabilidade dessa mistureba.  

SIMPLIFICAÇÃO DEMAIS  

Acho que costurar críticas esportivas tendo o tempero do campo político no sentido mais amplo da expressão é de potencialidade de risco enorme. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. A metástase ideológica é iminente.  

Juca Kfouri fez um empilhamento de incorreções ao escrutinar declaração de Cuca, pós-jogo. Cuca disse e explicou que o Atlético Mineiro acabou no prejuízo quando o Palmeiras se viu reduzido a 10 jogadores.  

Uma declaração telepaticamente reproduzida por mim, que acompanhei o jogo sentado confortavelmente no sofá, ao me dirigir a meu filho. Disse: “Acho que a expulsão vai ajudar o Palmeiras”. E ajudou muito. O Imponderável Futebol Clube entrou em campo. Ou, no caso, a Sociedade Esportiva Imponderável.  

11 CONTRA 10 

Juca Kfouri adotou postura ácida à declaração do treinador mineiro. É um direito interpretativo que, não fosse contaminado pelo que vou explicar mais adiante, teria apenas e somente a fragilidade natural de quem despreza a multiplicidade de fatores que influenciam o resultado de uma partida de futebol.  

Ter 11 jogadores contra 10 pode sim ser pior para quem está em vantagem numérica. Juca Kfouri caminha em direção à eutanásia avaliativa exatamente porque segue a trilha mais fácil, de que quem tem 11 tem a vantagem contra quem tem 10. 

Vamos então a alguns vetores que influenciaram o comportamento e o resultado final do jogo no Allianz Park. 

PRESSÃO SENSORIAL  

Com a vantagem de um jogador, o Atlético Mineiro passou a ter obrigação sensorial da vitória num jogo parelho no qual, no Mineirão, foi muito melhor que o adversário – 11 contra 11.  

Um adversário que arrancou o empate após estar em desvantagem de dois gols exatamente porque o time de Abel Ferreira é o mais bem-acabado exemplar de eficiência nos gramados brasileiros. É a simplicidade performática em estágio de encantamento.  

A torcida do Palmeiras, que poderia se exasperar com o time em condições de tempo e temperatura normais, passou a ser mais tolerante. Mais que isso: juntou-se ainda mais à equipe, relevando eventuais falhas e magnetizando o ambiente de martírio técnico-tático. Quem conhece a importância da atmosfera num jogo de futebol sabe que não são poucas as possibilidades de menos virar mais. Foi o que se deu.  

JOGO REESTRUTURADO   

Taticamente, o jogo ganhou reestruturação mais apropriada ao perfil do Palmeiras e menos dócil ao modelo de jogo do Atlético.  

O Palmeiras recuou todo mundo para jogar em contragolpe, como nos primeiros tempos de Abel Ferreira, quando iniciou a construção da máquina mortífera que comanda.  

O Atlético perdeu os espaços de construção de jogadas e, pressionado pela obrigação de vencer (que Juca Kfouri paradoxalmente admite ao cobrar a vitória do time de Cuca), aos poucos foi se desorganizando ao incorrer na velharia de cruzamentos em direção à grande área, arte dominante palmeirense, com a lateralização e a profundidade organizadas por Abel Ferreira.  

METROS SUBVERTIDOS  

Numa linguagem pretensamente científica, diria que foram subvertidos os metros quadrados disponíveis para o Atlético e o Palmeiras ocuparem democraticamente em busca do prevalecimento da meritocracia em condições de igualdade de ocupantes. 

O Atlético passou a ter supostamente mais espaço diante de um adversário desfalcado. Supostamente, claro, porque na medida em que o Palmeiras reduzia drasticamente os espaços defensivos, aliás também uma especialidade de Abel Ferreira, o Atlético era flagrado na dúvida cruel de enfrentar o risco de dar campo também defensivo à letalidade adversária.   

Juca Kfouri fez uma abordagem do jogo que não levou em consideração condicionantes ambientais e táticas. Preferiu a trilha convencional que, embora faltem estatísticas, daria razão a quem entende que com 11 é mais difícil do que contra 10.  

Ao generalizar sem dar atenção ao específico, Juca Kfouri ignorou uma situação de jogo peculiar, especial, e, portanto, inequivocamente contraditória à retórica-padrão.  

MELHOR OU NÃO?  

Se forem ouvidos especialistas no assunto, sobretudo treinadores que já enfrentaram situação semelhante à do jogo em questão, não haverá a unanimidade projetada por Juca Kfouri.  

Ou seja: é sim melhor jogar contra 10 do que contra 11, desde que, entretanto,  o contexto seja minuciosamente escrutinado. Como é o caso de Palmeiras versus Atlético.  

Não se pode negar, portanto, que um fator fora da curva de planejamento interferiu senão no resultado final, porque dois times da grandeza de Palmeiras e Atlético podem tudo num confronto direto, ao menos no enredo da disputa.   

Juca Kfouri provavelmente já viu tanto jogo de futebol quanto eu e sabe que não faltam exemplos que dão razão a Cuca e a todos que enxergaram aquele jogo sem vieses e preconceitos. Ou seja: que viram o jogo apenas com o olhar esportivo. 

ABRINDO O JOGO   

E é nesse ponto que queria chegar. Juca Kfouri e outros colunistas esportivos (poucos, por sinal) estão pegando um atalho diferenciado, especial, mas também perigoso, de tratar o mundo da bola nas quatro linhas como extensão político-ideológica. É um direito deles. Mas devem assumir a responsabilidade de abrirem flancos à crítica.  

No caso da crônica que escreveu para a Folha tendo Cuca como alvo de ataque um pouco acima do tom, claramente o que pesou mesmo é o passado do treinador. E também a intolerância de Juca Kfouri ao interpretar como xenofobismo qualquer crítica a treinadores estrangeiros.  

O colunista da Folha de S. Paulo iniciou o artigo de hoje com o seguinte e esclarecedor enunciado à motivação crítica:  

 Sobre o episódio de que participou e o condenou, na Suíça, envolvendo uma menina de 13 anos de idade, Cuca continua calado sem nem sequer ter a coragem de pedir desculpas. Preferiu criar um novo clichê para o futebol, como outros já celebrizados neste Brasil do autoengano: “Com o jogo 11 contra 11, a nossa oportunidade era maior de vencer do que com 11 contra 10”. 

CONTAMINAÇÃO IDEOLÓGICA   

Para quem está nesse ofício de escrever há 300 anos, e nem precisaria de tanto, Juca Kfouri mais uma vez (e é um direito dele, assim como a avaliação de terceiros) partiu de um pressuposto comportamental deplorável para tentar fazer a cabeça dos leitores de que Cuca falou bobagem.   

Cuca pode ter feito bobagem no passado, mas ao analisar o jogo em São Paulo foi preciso. Mais que isso: enfrentou uma maré acomodatícia da crônica esportiva em geral que, raras exceções, fecha os olhos à realidade de acordo com o resultado final de um jogo. O grande Tostão, melhor colunista esportivo do País, trata frequentemente dessa anomalia.   

Não parece que Juca Kfouri esteja conseguindo se libertar da contaminação ideológica, política, partidária e tudo o mais, quando se lança a meter a mão na cumbuca da crônica esportiva mesclada de crítica social, por assim dizer.  

CASA BANDIDA   

Quando, por exemplo, chama a CBF de Casa Bandida do Futebol, enfrentando com isso uma crônica esportiva submissa aos poderosos de plantão, Juca Kfouri dá um tiro tão certeiro (sobretudo e até prova em contrário quando se refere ao passado daquela instituição) quanto comete erro clamoroso ao afirmar, como afirmou, que o ex-presidente da República é um santo homem e que, por extensão, a Operação Lava Jato foi uma farsa. 

Para terminar, como jornalista-redação que sou, aqui no meu cantinho, escrevendo sobretudo e sobre tudo, reservo elogios e pancadas somente às respectivas editorias. O que é Política é Política, o que é Esporte é Esporte, o que é Sociedade é Sociedade e o que é Imprensa, como neste texto, é Imprensa.  

Quando Juca Kfouri coloca Casagrande como um dos maiores centroavantes da história do Corinthians e do futebol brasileiro, o que resplandece é que se privilegia descaradamente o relacionamento pessoal, permeado de afeição ideológica, e uma insuperável incapacidade de afastar esses condimentos do que realmente interessa, ou seja, Casagrande no gramado.  

Casagrande foi um centroavante nota cinco, de zero a 10, e está longe de ser visto como ídolo da Fiel.  

Casagrande é incomparavelmente menos importante como jogador do que Cuca como treinador. Estupro e drogas à parte. Como disse, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.  

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